sexta-feira, 30 de abril de 2010

Capítulo IV

AMOR CERTEIRO – A lenda urbana de Obirici – III Parte

1º Movimento – Mocinhos e Bandidos

Como dizíamos no capítulo anterior, felizmente, a trágica, e não menos bela, história da índia Obirici não se encerrou na fantástica metamorfose. E, muito menos, em monumento ou viaduto. Pois quase dois séculos depois, precisamente em março de 1943, na rua Tapiaçú, no mesmo bairro do Passo da Areia, chegou ao mundo Teresa... descendente de Pedro e Obirici.
Que, por ter herdado decerto o coração nobre e sensível de sua antepassada, casou-se, anos depois, com Armando Capuano – homem igualmente digno e altruísta –, muito próximo a Brizola, no velho PTB, e que, decerto por isso, nos anos de chumbo, viu-se obrigado a exilar-se com a mulher no Uruguai. Com eles, seguiram Lucas e Bárbara, pequenos neófitos nos méritos e nas agruras dos ideais e das militâncias. De volta, justamente nove meses e um dia depois da alvoroçada chegada de Brizola ao Rio, e de uma festa em que Lucas, agora um jovem emedebista, compareceu representando o pai – que decidira pendurar decisivamente as chuteiras revolucionárias e reabrir seu consultório de advocacia, mais de acordo com sua índole tranqüila e seu caráter pacato –, nasceu Beatriz, o mais novo membro da família. Sem negar as origens, no exato instante em que Teresa – cheia de idéias, e ainda com muita disposição para tentar mudar, senão o mundo, pelo menos seu bairro, depois de meses de luta, e sem saber que a neta, antecipada, acabara de nascer – comemorava, na associação comunitária, a vitória na luta pelo aterro do valão, deu seu primeiro grito de vida. Do valão que já havia sido um dos braços do antigo Ibicuiretã, o rio de areia, o rio das lágrimas de Obirici por seu amor...
(E onde pouco depois se construiria o Shopping Iguatemi.)

Beatriz – uma espécie de miniatura da avó, ou o mágico resultado de uma fusão de raças muito bem feita –, desde pequena, já exibia, além dos cabelos lisos e negros dos antepassados, uma rara combinação de sensibilidade – que à primeira vista poderia ser confundida com timidez – com determinação; a par de uma inteligência incomum e de uma generosidade que parecia se estender a todo e qualquer ser que habitasse esse planeta. Para matar um mosquito ou espantar uma mosca, era um custo. Pescaria, nem pensar. Certa vez, com apenas dois anos e meio, num veraneio em Arambaré, mal tendo avistado um homem, que inocentemente pescava um pouco adiante de onde tomavam banho, correndo em sua direção, e sem que pais e avós pudessem contê-la, com a autoridade de um magistrado, ordenara: “Home! Os peixes são do rio! Não pode tirar eles daí!”. O pobre, embasbacando-se diante daquela fedelha metida a defensora da natureza, e que nem falar direito sabia, não teve outro remédio que devolvê-los às águas, e, sem dizer palavra, foi-se embora, matutando sobre as surpresas da vida. Cachorro preso, então, era um escândalo! A pequena parava diante da porta do dono algoz e abria o berreiro, só parando de chorar quando o monstro tivesse libertado o pobrezinho. Cachorros de rua, já levara três para a casa dos avós, os quais, Armando, que não podia negar-lhe nada, adotara, terminando por andar com o trio, para cima e para baixo, em suas voltas pela vizinhança.
- Em outra vida essa menina foi tibetana – considerou Teresa, que entre uma militância e outra, começara a interessar-se pela teoria da reencarnação e pelo zen-budismo.

Bia, como acabou sendo chamada, parecia, em certos dias, emanar frescor e brisas de primavera, que exorcizavam medos, dissabores ou tristezas, guardados nas lembranças ou presentes no inevitável cotidiano. Em outros, surgia como um dia pleno e ensolarado de verão, fazendo brotar risos e reafirmando certezas. Mesmo naqueles em que entrava porta adentro feito um furacão, fustigada pelas injustiças do mundo, e discursando incendiários manifestos para a espantada e não menos divertida família, não perseverava nas insalubridades do mau-humor. Sua indignação tinha endereço certo, e, seu ultraje, justificativa; daí que, passado o impulsivo momento, recuperava o equilíbrio, dedicando-se a encontrar uma saída para o problema.

Quanto aos planos para o futuro, diferentemente da maioria das garotas, que sonhava em ser, um dia, bailarina, advogada, médica ou cantora, quando abordada sobre o que gostaria de ser, desde os quatro anos de idade, respondia, invariavelmente: “Índia!” “Índia?” – admirava-se o interlocutor, pensando não ter ouvido muito bem. “Índia! Índia!” – repetia a guria, mais alto, pensando tratar-se de algum surdo. No Carnaval, aproveitava para matar a vontade de, pelo menos, vestir-se como uma. A cada ano, uma nova fantasia – das mais variadas tribos, daqui, ou da América do Norte, que ela diligentemente procurava nos livros e fazia a mãe ou a avó providenciarem com alguma costureira.
Para isso de querer ser índia, contribuira um relato, entreouvido numa conversa de adultos. Teresa contara que sua avó, que adorava juntar a criançada para narrar histórias, falara certa vez em Obirici, afirmando serem eles descendentes diretos da índia, ou, mais precisamente, do irmão de Obirici, já que esta, ao morrer transformando-se em rio, não deixara, é claro, nenhum descendente. Teresa lembrava-se de ter passado aquela noite, em que ouviu a narrativa, acordada, maravilhada... Assombrada pelo fato de serem parentes de uma índia que virou rio...
- E o triste de tudo, é que hoje, aquele rio, se de fato nasceu das lágrimas de Obirici, tornou-se um valão e foi aterrado... – concluiu.
- Mas não completamente – revelou Lucas. – Ainda existe outro braço, é menor e fica meio oculto... Quer dizer, pelo menos existia quando eu era piá. Muito banho tomamos ali, eu e a molecada.
- Tens razão... agora me lembro. Tomara que não tenha o fim do outro – ponderou Armando.
- Tomara... – suspirou Teresa.

Lucas, entretanto, quem sabe por ter puxado à parte mais cética da família, ao escutar a história, em outras ocasiões, acabava levando a coisa para o lado da brincadeira. O que não o impediu de, certa feita, num aniversário, ao perceber o descaso e a zombaria de um homem que recém soubera da história, naquele jeito pausado e levemente irônico, e com a calma que havia herdado de Armando, considerar:
- Engraçado... quando alguém diz descender de político, general, ou até mesmo de conde ou marquês, parece ser levado mais a sério... quando não, até respeitado... ou reverenciado. No entanto, em se tratando de índios, que supostamente devem... ou deviam ter igualmente suas figuras de importância, isso acaba gerando um tanto de descrença e outro tanto de desprestígio, quando não de galhofa... – declarou, olhando meio enviesado para o incauto – que, percebendo a gafe, instantaneamente mudou o tom, chegando a considerar a história, além de factível, muito interessante...
A pequena Bia, que acompanhava a conversa, fingindo dedicar plena atenção às adoradas bonecas de papel que herdara de Teresa, sentiu naquele instante um enorme orgulho do pai; entendendo que, mesmo sem se empolgar muito pelo fato da lenda poder ser um patrimônio da família, ele não deixava de respeitá-la, com isso, respeitando também seus antepassados. Mas, em conversas com os mais íntimos, Lucas prosseguia com a galhofa. Entre outras coisas, jurava que ainda mandaria construir uma réplica da estátua da índia para colocá-la no jardim da casa dos pais. Com uma fonte. E que iriam, ele e Teresa, qualquer noite, na calada, roubar a Obirici verdadeira para preservá-la de ataques de vândalos, dando-lhe o merecido destaque: quem sabe “plantando-a” na Praça da Matriz ou na frente do Arco do Triunfo, na Redenção. Ao que Armando, no mesmo espírito, replicava, insistindo para que aproveitassem e procurassem na herança de que tanto se orgulhavam, alguns traços genéticos... de loucura...

Um dia, Bia, com nove anos, sentada na soleira da porta da cozinha, com uma gata que havia aparecido por ali no colo, de tanto matutar, perguntou à avó:
- Afinal... é verdade?
- É verdade... o quê?
- Essa... lenda... de que descendemos de índios... de Obirici...
- Bem, que descendemos de índios não é difícil de ver, basta olhar para a tua cara. Quanto à Obirici... já duvidei, questionei... e acabei aceitando. Total... porque não acreditar? Se for verdade, ou mero fruto da imaginação, decidi que vou continuar acreditando. Nós somos descendentes de Obirici, ou do irmão de Obirici, que seja, e pronto! E como eu gostaria que todos os descendentes de índios, que povoam esse nosso Rio Grande, tivessem o orgulho que temos de nossas origens! – inflamou-se.
A garota não disse nada. Dirigindo-se em silêncio à fiel amiga, demonstrou sua aprovação num abraço terno e silencioso.
A avó não passava muito tempo sem se surpreender com a neta...

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Capítulo III

Obirici – II parte – Criada por Rose de Portto Alegre

Acredite ou não, caro leitor – e, se não acreditar, procure as provas e evidências, é seu direito – o fato é que, depois que Obirici morreu de amores, criando com suas lágrimas o Ibicuiretã – ou Rio de Areia –, seu irmão, Iracuí, saudoso e desconsolado com sua perda, resolveu prestar-lhe uma última homenagem: deu à filha, que acabara de nascer, o seu nome. Comprova-o documentos encontrados quase dois séculos depois, por milagre salvos das pragas dos cupins e das traças, e, ao que tudo indica, escritos, de próprio punho, pelo português Pedro, um dos heróis da história.
A pequena Obirici, a cada dia tornava-se mais parecida com a tia – provocando, com isso, lágrimas furtivas no pai. O que, ao mesmo tempo, o consolava. Semelhante nas feições, mas diferente no espírito. Essa, ao contrário da primeira, tinha um jeito mais destemido e aventureiro. Era mais livre, e mais forte. Tanto, que tornou-se comum vê-la passar cedinho em sua piroga, sozinha, em direção ao sul, onde costumava ficar por um dia inteiro, tendo por companhia apenas Tupã e os espíritos das matas.
Os índios sabiam respeitar a vontade de alguém que quisesse ficar sozinho. Com isso, ninguém lhe indagou o que fazia por lá.
Na verdade, ia encontrar os papagaios, porque era lá que eles ficavam, numa grande árvore, balançando-se e conversando entre si. Obirici, também gostava de nadar e mergulhar nas águas limpas e doces daquele rio. Um dia, encontrou um jovem branco, açoriano, que acabara de chegar com seus pais àquela terra.
Os Tapimirins, índios dessa região, diferentemente de outras tribos, não fugiram, não debandaram, nem lutaram, e acabaram, desse modo, convivendo pacificamente com o povo que chegava; já estando, àquela altura, mais ou menos acostumados a ver caraíbas andando por ali. De vez em quando, um grupo de índios, que saia para caçar mais longe, topava com um grupo de brancos, que também andava explorando a região, e era só.
Daí que Obirici não deu muita importância à presença do jovem português naquele dia, naquele local. E, mais vezes, acabou fazendo o seu velho percurso sem vê-lo. Era ela e a natureza. Porém, passou-se um tempo e, outra vez, o jovem estava lá. Agora parecendo fazer parte do lugar. A índia não pode deixar de notar que ele era bem bonito, apesar de branco, e de não usar nenhuma tinta no corpo. Mas seguiu a correnteza e a sua vida.
Na aldeia, na volta, se pegou pensando no português. Quem seria, e o que estaria fazendo; afinal, os caraíbas não costumavam sair da sua aldeia sem um bom motivo, e muito menos sozinhos.
Dali a três dias, Obirici saiu de novo em sua piroga e, nesse dia, como se ouvisse uma algazarra diferente, vinda das árvores onde ficavam os papagaios, resolveu descer e ver o que estava acontecendo. Puxando a canoa até a margem, entrou mato adentro. Andando um pouco, chegou a uma clareira, na qual o rapaz, sentado numa pedra, tocava uma flauta, sem notar que era observado. “Está tocando para os papagaios – pensou a moça –, parece comunicar-se com eles.” – E, escondida atrás de uma árvore, ficou a olhar a cena, fascinada. Aconteceu, no entanto, de um dos papagaios voar e ir parar justamente em cima da tal árvore. Por um instante, e, ao olhar o pássaro, a moça, mexendo-se em seu esconderijo, foi notada pelo rapaz, cujo nome era Pedro.
Naquela noite, antes de pegar no sono, Pedro pensou em Obirici; e Obirici, sonhou com Pedro.
Mais vezes eles voltaram à clareira dos papagaios. Um dia, entenderam que seus espíritos eram irmãos. Pedro, pela maneira como era apegado às coisas da natureza, mais parecia índio do que branco; e, Obirici, tinha uma tal vontade de tudo aprender e de tudo saber, que logo, logo, interessou-se em aprender a língua, e o que mais pudesse, dos portugueses.
E então, tiveram vontade de ficar juntos, após o entardecer; entretanto, acabaram voltando para suas famílias. E outro dia, e mais um, e mais outro, até que entenderam não poder continuar a viver um longe do outro.
Chegando em casa, cada um, com muita calma, equilíbrio e amor, falou com seus familiares. E como ambos eram bastante amados, além de muito respeitados por todos, os pais, apesar do estranhamento, não ousaram ir contra a sua vontade.
Tanto o povo índio, quanto o povo branco, entendeu ser, aquela união, uma benção, uma aliança benéfica, que decerto consolidaria o sentimento de paz que deveria haver perenemente entre as duas nações. Dali a alguns dias, a tribo e a pequena aldeia foram testemunhas de duas cerimônias de casamento: a primeira, na capela improvisada da aldeia dos caraíbas, e a segunda, que na oca central da aldeia tapimirim.
Capítulo II

As Lágrimas de Obirici (versão do original, publicada pela RBS).

A origem dos nomes da maioria dos bairros que formam a capital gaúcha se perde no tempo. Em muitos casos já nem há vestígios dos elementos que serviram para que recebessem a denominação pela qual são identificados até os dias de hoje.

É assim com o Passo da Areia. A areia já se foi há muito tempo. Aquela área da cidade está toda urbanizada.
O passo, até resistiu, mas não faz muito também deixou de existir. Antigamente, quando índios ainda habitavam a região, era um riachinho chamado por eles de Ibicuiretã, que significa “rio de areia”, “água que corre sobre o pó” ou ainda “passo da areia”. Brotava na baixada da Boa Vista e seu leito sinuoso passava pelo meio do areal.
Com a urbanização, o passo foi canalizado e virou um valão. Suas águas tornaram-se sujas e barrentas e atravessavam o bairro espalhando mau cheiro. Com certo alívio, os moradores locais viram o córrego ser aterrado no início dos anos 80, quando ali começou a construção de um shopping center.
Apesar deste fim um tanto melancólico, a origem do Ibicuiretã está ligada a uma linda história de amor.

Quando o homem branco sequer havia pisado naqueles areais, ali se instalara a tribo tapi-mirim, da nação dos tapes. Espremidos entre o Guaíba e morros, volta e meia precisavam defender sua taba com paus, pedras, lanças, arco e flecha de ataques de tribos inimigas. Os tapi-mirins viviam em permanente alerta. E como não tinham cacique, eram comandados por um chefe guerreiro. Se esse chefe adoecia, envelhecia ou morria, cabia ao conselho de anciãos escolher um novo líder para as batalhas que viriam.
Depois de eleito, o chefe, geralmente jovem e solteiro, começava a despertar a atenção das índias solteiras. Aquele que até outro dia era apenas mais um entre os seus, se convertia em um abençoado de Tupã, um escolhido dos deuses. E, assim, suscitava uma disputa entre as donzelas da aldeia. Todas passavam a usar seus enfeites mais bonitos, suas tintas mais coloridas, seus perfumes mais cheirosos. Tudo para conquistar o coração do agora poderoso guerreiro.

Mas com Obirici, uma linda jovem daquela tribo, os sentimentos não funcionavam deste jeito. Desde curumim ela nutria amor por um único índio. Nunca havia confessado sua paixão, no entanto. Amava em segredo, em silêncio, sozinha.
Quis o destino que o índio por quem ela era apaixonada fosse escolhido o chefe guerreiro dos tapi-mirins. Obirici pensou, então, que chegara o momento para se declarar.
- Grande chefe, estou aqui para dizer que te amo. Quero ser tua esposa, passar a vida ao teu lado.
- Tu não és a única a declarar amor por mim, Obirici.
- Outra índia se apresentou como tua pretendente?
- Sim. Ela diz me amar como ninguém mais me amaria.
- Mas eu te amo tanto quanto ela, mais até. E desde sempre. Desde que soube o que era amar alguém...
- Eu acredito, Obirici, mas estou indeciso.

Diante do tímido amor de sempre e da paixão repentina, o índio não soube o que fazer. Foram dias tristes para Obirici. Passou noites em claro, chorando, soluçando, odiando amar.
Como o novo chefe não chegava a uma decisão, ele próprio pediu que o sábio conselho de anciãos estabelecesse uma solução para o impasse. Assim foi feito: as duas pretendentes disputariam um torneio de arco e flecha. A vencedora seria a mulher do chefe guerreiro.

No dia do desafio, toda a tribo reuniu-se para assistir ao grande acontecimento. Nunca a disputa para ser esposa do chefe havia chegado tão longe. Muitos repararam que Obirici demonstrava estar muito nervosa, enquanto que a concorrente parecia ganhar confiança com toda aquela gente como assistência.
Obirici transbordava insegurança. Tremia seu arco, tremia sua flecha, tremia seu braço, suas pernas, seu corpo todo. O mundo tremia em seu redor. Suas flechas atingiam o alvo sem muita convicção, como se tivessem desistido do vôo no meio do caminho.
A outra índia parecia mais afeita ao arco e à flecha. Seus disparos eram precisos, fulminantes, certeiros. Cada flecha sua que acertava o alvo era como se acertasse também o coração de Obirici. Aos poucos sua vitória foi se tornando evidente.
Perdeu Obirici. Perdeu a batalha, perdeu seu amado, perdeu a razão. Enclausurada em sua oca, só fazia chorar. Não comia, não bebia, não dormia, quase esquecia até de respirar. No dia do casamento do homem que havia rejeitado seu amor, não agüentou de sofrimento. Saiu da aldeia correndo, em prantos, para longe, em direção a um ponto mais alto do areal.
Era noite de lua cheia, e para a lua Obirici chorou. Era noite estrelada, e para as estrelas Obirici chorou, uma lágrima para cada ponto brilhante do céu. Chorou tanto que sua face aos poucos foi se convertendo em lágrimas, seu corpo todo se transformando, se desmanchando, se desfazendo. Obirici virou suas lágrimas, e suas lágrimas viraram um riacho, que foi fazendo seu caminho pela areia até chegar à aldeia.
Primeiro assustados, depois consternados, os tapi-mirins perceberam que o rio eram as lágrimas de sofrimento de Obirici. Chamaram o arroio de Ibicuiretã, e os açorianos quando aqui chegaram o rebatizaram de Passo da Areia, que deu nome ao bairro.

Não há mais areia, não há mais passo, mas Obirici ainda existe. Próximo ao viaduto que leva o seu nome e que se ergue sobre a Avenida Assis Brasil, a índia está imortalizada em uma escultura, com os braços para o céu, pedindo um alento a Tupã.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

AMOR CERTEIRO – a Lenda Urbana de Obirici

Capítulo I


Cenário: A história se passa basicamente no belíssimo cenário das ilhas do Guaíba (que acho pouco explorado) – dos lugares mais bonitos de Porto Alegre.
Incorporei duas versões da mesma lenda, já que a primeira me parece mais pitoresca e a segunda tem mais elementos. Logo a seguir vem a minha versão da continuação. Funcionaria como uma ponte entre a Lenda e o romance atual.
A idéia é passar a Lenda e a continuação em desenho animado, antes (pequeno), como abertura simplesmente.

Atenção: toda a semelhança com o começo do O Pecado Mora ao Lado – nos respectivos inícios – é mera coincidência.

OBIRICI – I parte – Folclore - versão de Ary Veiga Sanhudo.

“Ora, pois, esta encantada cidade juvenil, como todo grande centro do mundo que se preza, também tem a sua enfeitiçada lenda de amor! Obirici é a donzela dos seus cuidados, cujo nome mágico no linguajar dos indígenas locais significa – bela serena flor da tarde!”

O local onde hoje se assenta a moderna e majestosa cidade de Porto Alegre não tinha, até 1742, um só habitante branco permanente, muito embora houvesse, espalhados pelo rincão de São Francisco, morro de Santa Teresa, vale da Cascata, colina dos Moinhos e Vento, baixada do Passo da Areia, várzea do Gravataí, vale do Jacareí e outros sítios, uma infinidade de índios da nação tupi ou guarani, mais conhecidos, nestas redondezas, por tribos dos Tapes, sob a invocação de “Tapiacus” e “Tapimirins”.

Esses índios, ao que se sabe, vieram pressionados pelos seus grandes inimigos, os Minuanos, e aqui se estabeleceram em tempos que se perdem na noite do tempo.

É evidente que outras tribos aqui tinham suas tabas, mas, é necessário frisar, que essa banda oriental das terras que morriam nas serenas águas do Guaíba, agora conhecida como zona norte da cidade, oferecia mais proteção aos selvícolas, tendo em vista o baluarte natural, representado pelo espigão da Serra Geral, que poeticamente vinha descambar próximo às areias da barra, aí na boca do rio, defronte à ilha da Pintada.

Abrigavam-se, então, por aí, resguardadas pelas águas e defendidos pela montanha.

E nisto não se pode deixar de observar que, com a chegada do branco invasor, e mesmo depois da vinda dos casais açorianos, esses indígenas, ao contrário dos outros, que procuravam fugir de qualquer maneira, não só permaneceram em suas ocas, como ainda, aliando-se aos adventícios, muito contribuíram para a prosperidade e desenvolvimento da primitiva povoação do Porto do Dorneles.

É certo que muito influiu, para a tolerante e diversa atitude dos s elvícolas da hoje cidade de Porto Alegre, a circunstância excepcional do elemento líquido que rodeia nossas terras e a fortaleza dos montes, onde esses primitivos habitantes, mais tranqüilos, circulavam livremente com suas “pirogas” e “igarás”, quer caçando, quer passeando ou quer bombeando o inimigo.

Daí porque, no local onde é agora o Passo da Areia, estabeleceram os seus toldos os “Tapimirins”, tribo aguerrida que muita luta travou não só com os “Tapiacus” , como ainda com os terríveis “Minuanos”, transformando essas baixas paragens em verdadeiros campos de batalha. Porque era só o inimigo descer o dorso do morro e a peleia campeava feroz e exterminante!

Era ali, pois, uma nação em permanente alerta.

E ocorreu, então, que em meio de tantos heróis valentes, um chefe surgiu, natural e pomposamente, impondo-se, e sobretudo aparentando singular valor e riqueza, de vez que sua linda tenda, diferente em tudo, era, ademais, protegida por inexpugnável cerca de varas de camboim e cambará.

Era um verdadeiro palácio em meio da simplicidade geral das “ocas” improvisadas e paupérrimas.

E como não podia deixar de ser... era o gostosão daquelas paragens... vivamente requestado pelas mulheres de todas as tribos!

Duas jovens, não obstante, disputavam das graças do grande cacique, deixando-o em visível incerteza quanto à preferida.

Até que um dia, depois de muito pensar, mesmo porque a situação cada vez se tornava mais embaraçosa, resolveu o chefe índio que seria a eleita do seu coração aquela que conseguisse sair vencedora num torneio de flechas.

E assim, numa bela e sorridente manhã de primavera, chamou as duas belas guaranis e, dando-lhes uma flecha a cada uma, disse: – “Casar-me-ei com aquela que vencer o torneio!”

Não há dúvida que as rivais tiveram um sobressalto e entre o embaraço e a surpresa começou a contenda.

A vencedora, cujo nome a lenda não guardou, provavelmente mais calma e mais dona de si, cheia de faceirice morena de moça dos campos, levantou a flecha, distendeu o arco e acertou na borda do alvo plantado pelo guerreiro amado a uns metros de distância.

Obirici, tímida e sensível, apercebendo-se do perigo que o seu coração amante enfrentava, lançou, trêmula, a sua flecha, que passou longe do cepo que servia de alvo.

Havia perdido o torneio e com ele o seu grande amor!

A lenda diz que precisamente era ela quem mais o amava, e daí uma tristeza imensa a invadiu definitivamente.

E tão desiludida e agoniada ficou, que se recolheu, dentro da sua infelicidade, à sua oca, com o coração partido e alma voltada para o infortúnio e a morte, pedindo sinceramente a Tupã que mandasse um raio para terminar-lhe com aqueles dias da sua vida amargurada. Só aspirava, pois, uma coisa: morrer!

Daí que a formosa indígena, banhada num desespero imenso e numa dor pungente, voltou assim suas ardentes súplicas aos céus, implorando ao deus da sua devoção que a levasse aos seus insondáveis reinos do infinito!

No seu desespero pôs-se a chorar, e tanto chorou, reza a tradição, que as suas lágrimas, depois de desfigurarem o seu belo rosto, continuaram dia e noite a cair, cristalinas e luminosas, e correndo sobre a terra arenosa, que os seus pés vacilantes pisavam, deixaram nela, para sempre, o regato que os indígenas chamavam Ibicuiretã, ou seja, o nosso conhecido Arroio da Areia, lá no passo do mesmo nome, e ora encoberto em boa parte pela urbanização da atual avenida Tapiaçu.

Quem, pois, hoje, ao passar ao lado das águas barrentas e sujas daquele grande valo ao longo da Avenida Rio São Gonçalo, no bairro Passo da Areia, e que nasce naquela baixada para os lados do Country Club, no arrabalde Boa Vista, pode imaginar que tão insignificante acidente geográfico, atualmente ponto quase perdido da cidade, acendeu na imaginação ingênua do nosso aborígine uma tão maravilhosa lenda de amor e paixão?

Como se vê desta narração, essa foi a lenda, ou melhor, a explicação que os nossos índios lançaram mão para justificar a existência daquelas águas lodosas que se escoam lá na baixada do Passo da Areia, então conhecida entre os naturais, antes da chegada dos açorianos a estes campos de Viamão, como o lugar em que as águas correm sobre o pó: Ibicui-retã!

Obirici era uma linda índia da tribo Tapimirim, que morava aí para as bandas do Passo da Areia, à margem do riacho que acima descrevemos, no lugar conhecido pelos silvícolas pelo nome de Tapiaçu, ou seja, aldeia grande, e cujos sentimentos, naturalmente reforçados pela imaginação e o tempo, inspiraram essa página, a mais bela e encantadora crônica desta aprazível cidade sorriso.

Eis aí, pois, a lenda de amor da cidade!

Teria ficado a nossa crônica só nisso, e não passaria a outras esferas da arte, embora seja uma página deliciosa e admirável, desenterrada da história deslumbrante da cidade, não fora os fluídos de imaginação e sensibilidade que inspiraram a musa do compositor Gabriel Padilha que, enfeitiçado pela lenda da bela Obirici, divulgada nas páginas do mais querido vespertino da cidade – Folha da Tarde – a musicou e, apresentando ao grande público, transformou tão fascinante tema numa agradável canção popular, intitulada “Canção de Obirici”.

I

Não sabias que o amor,
É tudo o que a gente tem,
Tudo o que se pode dar...
E não se pode negar...

II

Obirici, virgem morena,
De olhos verdes cor do mar,
Essas lágrimas de amor,
Dos teus olhos a chorar...
Parecem gotas de orvalho,
São como chuva de estrelas,
No firmamento a brilhar,
Tupã ouviu tua prece,
E fez nascer do teu pranto,
Um riacho de saudades,
Daquele amor puro e santo,
Obirici... Obirici...