sexta-feira, 30 de abril de 2010

Capítulo IV

AMOR CERTEIRO – A lenda urbana de Obirici – III Parte

1º Movimento – Mocinhos e Bandidos

Como dizíamos no capítulo anterior, felizmente, a trágica, e não menos bela, história da índia Obirici não se encerrou na fantástica metamorfose. E, muito menos, em monumento ou viaduto. Pois quase dois séculos depois, precisamente em março de 1943, na rua Tapiaçú, no mesmo bairro do Passo da Areia, chegou ao mundo Teresa... descendente de Pedro e Obirici.
Que, por ter herdado decerto o coração nobre e sensível de sua antepassada, casou-se, anos depois, com Armando Capuano – homem igualmente digno e altruísta –, muito próximo a Brizola, no velho PTB, e que, decerto por isso, nos anos de chumbo, viu-se obrigado a exilar-se com a mulher no Uruguai. Com eles, seguiram Lucas e Bárbara, pequenos neófitos nos méritos e nas agruras dos ideais e das militâncias. De volta, justamente nove meses e um dia depois da alvoroçada chegada de Brizola ao Rio, e de uma festa em que Lucas, agora um jovem emedebista, compareceu representando o pai – que decidira pendurar decisivamente as chuteiras revolucionárias e reabrir seu consultório de advocacia, mais de acordo com sua índole tranqüila e seu caráter pacato –, nasceu Beatriz, o mais novo membro da família. Sem negar as origens, no exato instante em que Teresa – cheia de idéias, e ainda com muita disposição para tentar mudar, senão o mundo, pelo menos seu bairro, depois de meses de luta, e sem saber que a neta, antecipada, acabara de nascer – comemorava, na associação comunitária, a vitória na luta pelo aterro do valão, deu seu primeiro grito de vida. Do valão que já havia sido um dos braços do antigo Ibicuiretã, o rio de areia, o rio das lágrimas de Obirici por seu amor...
(E onde pouco depois se construiria o Shopping Iguatemi.)

Beatriz – uma espécie de miniatura da avó, ou o mágico resultado de uma fusão de raças muito bem feita –, desde pequena, já exibia, além dos cabelos lisos e negros dos antepassados, uma rara combinação de sensibilidade – que à primeira vista poderia ser confundida com timidez – com determinação; a par de uma inteligência incomum e de uma generosidade que parecia se estender a todo e qualquer ser que habitasse esse planeta. Para matar um mosquito ou espantar uma mosca, era um custo. Pescaria, nem pensar. Certa vez, com apenas dois anos e meio, num veraneio em Arambaré, mal tendo avistado um homem, que inocentemente pescava um pouco adiante de onde tomavam banho, correndo em sua direção, e sem que pais e avós pudessem contê-la, com a autoridade de um magistrado, ordenara: “Home! Os peixes são do rio! Não pode tirar eles daí!”. O pobre, embasbacando-se diante daquela fedelha metida a defensora da natureza, e que nem falar direito sabia, não teve outro remédio que devolvê-los às águas, e, sem dizer palavra, foi-se embora, matutando sobre as surpresas da vida. Cachorro preso, então, era um escândalo! A pequena parava diante da porta do dono algoz e abria o berreiro, só parando de chorar quando o monstro tivesse libertado o pobrezinho. Cachorros de rua, já levara três para a casa dos avós, os quais, Armando, que não podia negar-lhe nada, adotara, terminando por andar com o trio, para cima e para baixo, em suas voltas pela vizinhança.
- Em outra vida essa menina foi tibetana – considerou Teresa, que entre uma militância e outra, começara a interessar-se pela teoria da reencarnação e pelo zen-budismo.

Bia, como acabou sendo chamada, parecia, em certos dias, emanar frescor e brisas de primavera, que exorcizavam medos, dissabores ou tristezas, guardados nas lembranças ou presentes no inevitável cotidiano. Em outros, surgia como um dia pleno e ensolarado de verão, fazendo brotar risos e reafirmando certezas. Mesmo naqueles em que entrava porta adentro feito um furacão, fustigada pelas injustiças do mundo, e discursando incendiários manifestos para a espantada e não menos divertida família, não perseverava nas insalubridades do mau-humor. Sua indignação tinha endereço certo, e, seu ultraje, justificativa; daí que, passado o impulsivo momento, recuperava o equilíbrio, dedicando-se a encontrar uma saída para o problema.

Quanto aos planos para o futuro, diferentemente da maioria das garotas, que sonhava em ser, um dia, bailarina, advogada, médica ou cantora, quando abordada sobre o que gostaria de ser, desde os quatro anos de idade, respondia, invariavelmente: “Índia!” “Índia?” – admirava-se o interlocutor, pensando não ter ouvido muito bem. “Índia! Índia!” – repetia a guria, mais alto, pensando tratar-se de algum surdo. No Carnaval, aproveitava para matar a vontade de, pelo menos, vestir-se como uma. A cada ano, uma nova fantasia – das mais variadas tribos, daqui, ou da América do Norte, que ela diligentemente procurava nos livros e fazia a mãe ou a avó providenciarem com alguma costureira.
Para isso de querer ser índia, contribuira um relato, entreouvido numa conversa de adultos. Teresa contara que sua avó, que adorava juntar a criançada para narrar histórias, falara certa vez em Obirici, afirmando serem eles descendentes diretos da índia, ou, mais precisamente, do irmão de Obirici, já que esta, ao morrer transformando-se em rio, não deixara, é claro, nenhum descendente. Teresa lembrava-se de ter passado aquela noite, em que ouviu a narrativa, acordada, maravilhada... Assombrada pelo fato de serem parentes de uma índia que virou rio...
- E o triste de tudo, é que hoje, aquele rio, se de fato nasceu das lágrimas de Obirici, tornou-se um valão e foi aterrado... – concluiu.
- Mas não completamente – revelou Lucas. – Ainda existe outro braço, é menor e fica meio oculto... Quer dizer, pelo menos existia quando eu era piá. Muito banho tomamos ali, eu e a molecada.
- Tens razão... agora me lembro. Tomara que não tenha o fim do outro – ponderou Armando.
- Tomara... – suspirou Teresa.

Lucas, entretanto, quem sabe por ter puxado à parte mais cética da família, ao escutar a história, em outras ocasiões, acabava levando a coisa para o lado da brincadeira. O que não o impediu de, certa feita, num aniversário, ao perceber o descaso e a zombaria de um homem que recém soubera da história, naquele jeito pausado e levemente irônico, e com a calma que havia herdado de Armando, considerar:
- Engraçado... quando alguém diz descender de político, general, ou até mesmo de conde ou marquês, parece ser levado mais a sério... quando não, até respeitado... ou reverenciado. No entanto, em se tratando de índios, que supostamente devem... ou deviam ter igualmente suas figuras de importância, isso acaba gerando um tanto de descrença e outro tanto de desprestígio, quando não de galhofa... – declarou, olhando meio enviesado para o incauto – que, percebendo a gafe, instantaneamente mudou o tom, chegando a considerar a história, além de factível, muito interessante...
A pequena Bia, que acompanhava a conversa, fingindo dedicar plena atenção às adoradas bonecas de papel que herdara de Teresa, sentiu naquele instante um enorme orgulho do pai; entendendo que, mesmo sem se empolgar muito pelo fato da lenda poder ser um patrimônio da família, ele não deixava de respeitá-la, com isso, respeitando também seus antepassados. Mas, em conversas com os mais íntimos, Lucas prosseguia com a galhofa. Entre outras coisas, jurava que ainda mandaria construir uma réplica da estátua da índia para colocá-la no jardim da casa dos pais. Com uma fonte. E que iriam, ele e Teresa, qualquer noite, na calada, roubar a Obirici verdadeira para preservá-la de ataques de vândalos, dando-lhe o merecido destaque: quem sabe “plantando-a” na Praça da Matriz ou na frente do Arco do Triunfo, na Redenção. Ao que Armando, no mesmo espírito, replicava, insistindo para que aproveitassem e procurassem na herança de que tanto se orgulhavam, alguns traços genéticos... de loucura...

Um dia, Bia, com nove anos, sentada na soleira da porta da cozinha, com uma gata que havia aparecido por ali no colo, de tanto matutar, perguntou à avó:
- Afinal... é verdade?
- É verdade... o quê?
- Essa... lenda... de que descendemos de índios... de Obirici...
- Bem, que descendemos de índios não é difícil de ver, basta olhar para a tua cara. Quanto à Obirici... já duvidei, questionei... e acabei aceitando. Total... porque não acreditar? Se for verdade, ou mero fruto da imaginação, decidi que vou continuar acreditando. Nós somos descendentes de Obirici, ou do irmão de Obirici, que seja, e pronto! E como eu gostaria que todos os descendentes de índios, que povoam esse nosso Rio Grande, tivessem o orgulho que temos de nossas origens! – inflamou-se.
A garota não disse nada. Dirigindo-se em silêncio à fiel amiga, demonstrou sua aprovação num abraço terno e silencioso.
A avó não passava muito tempo sem se surpreender com a neta...

2 comentários:

  1. envolvente a história das heranças genéticas, sua negação e aceitação.
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    qdo criança, conheci a vovó velhinha, em seus 105 anos de vida. na realidade era nossa bisa, mas assim a chamávamos: vovó velhinha.
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    geralmente ficava sentada no batente da porta dos fundos da casa, mascando seu rolo de fumo e esperando pela nossa visita. era pura magia.
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    vovó velhinha era negra e nos contava história
    a não poder mais sobre seu casamento com o moço branco que a trouxe pra cidade. quanta coisa se perde na memória! mas sua imagem nunca. nem sei quando morreu mas a sua força era imensa. andava naquele casarão com apoio de uma bengala e fazia quase tudo.

    como negar que a minha origem está também nessa mulher tão firme e feliz? pena que as fotos em p&b estejam já tão apagadas. mas as memória, nunca. e as do que seria o nosso vovô
    velhinho, nunca as tive. não o conheci. pena!

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