sexta-feira, 28 de maio de 2010

Na popa, Victor e Bruno dormiam a sono solto, cobertos por uma manta que André lhes trouxera. Bia, já tendo pego uma bela cor, começou a tiritar. Mais que depressa, o rapaz lhe trouxe um blusão, com ele cobrindo-lhe os ombros.
- Pronto... agora tá melhor, né?... – disse, dando uma leve apertada, como um abraço desajeitado nos seus braços. No exato instante em que uma brisa alcoviteira passou, envolvendo-o com o perfume dos seus cabelos.
Bia, de costas, fechou os olhos, sentindo, secreta e deliciosamente, o abraço fugaz.
Que, de uma hora para outra, decerto por uma viração daquelas águas, ou quem sabe pelo inesperado pôr de sol, que despejando-se em fachos na linha do horizonte, e parecendo querer, de despedida, abraçar toda a cidade, e que com tanto esplendor cegou-os, transformou-se num abraço apaixonado, quase desesperado. Acompanhado pelo beijo mais doce – Oh, Irajá! doce como mel – pensou a moça –, na anatomia certa das bocas, no movimento das línguas e no gosto das salivas. O toque das peles, o cheiro dos corpos e a respiração, como pano de fundo, roubando-os à razão.

Um tempo impossível de ser medido, embora indelevelmente transformado em eternidade em suas lembranças, devolveu-os por fim, estremecidos e de coração acelerado, à realidade da terra.
- Ah, Bia... me desculpe. Não sei o que me deu...
- Não se desculpe – e aconchegou-se ao seu abraço, enquanto voltavam a um silêncio intenso e resistente que parecia querer prolongar a magia. Tinham medo de, ao sair daquele estado de apaixonada embriaguez, perder o que havia existido. Insidioso fantasma de amores falidos? Maligno pressentimento?...
De qualquer maneira, os sulcos das águas, agora, refletiam e confirmavam outros, profundos, definitivos, e certamente marcados a fogo... em suas almas.
Foi André que, a custo, quebrou o encantamento. Já aportavam.
- Então... passou o frio? – falou num acento rouco e, ao mesmo tempo, suave.
- Sim... “e para sempre” – teria dito a moça ao perceber, tão perto de si, a intensidade dos olhos azuis, que agora pareciam mais escuros.

E logo surgiam Victor e Bruno, com cara de recém acordados.
O céu, querendo fazer jus à lenda de que a cidade tinha o pôr de sol mais lindo do mundo, não se fez de rogado, e exibiu-se em rajadas de rosa, laranja e ouro, logo transformadas em puro azul rei, que, lembrando requintados frisos, desciam em clarões escarlates e corais com fulgurações púrpuras pela linha do horizonte. À leste rebentaram pássaros, no derradeiro balé com que encerrariam o dia. E bem acima de suas cabeças, papagaios, algariados e tagarelas, apressados – quem sabe para pegar um bom lugar nos galhos da sua árvore preferida – apareceram, sacudindo o que restara da sonolência de Bruno, que não se intimidou e respondeu à altura, fazendo todos rirem.
Uma lufada vigorosa fez com que Bia, instintivamente, se encolhesse mais ainda no blusão.
- Ah, André... que passeio inesquecível. Que dia!...
- Eu também... aprendi muito. Aliás... poderíamos pensar talvez em cobrar ingressos e inventar o passeio-seminário, no qual as pessoas ouviriam e discutiriam temas variados... que tal? – falou em tom de brincadeira.
- Ah, ah, ah! Uma boa idéia!
Ao descerem para pegar o carro, já tendo se despedido de Domenico e de Victor – que adorou ter conhecido Bruno, prometendo-lhe uma visita qualquer dia – no corrimão, outra vez suas mãos roçaram-se de leve, fazendo com que novas ondas de emoção jorrassem em seus corpos.

Aquele fora, sem dúvida, um dos melhores domingos de suas vidas.

Mais tarde, após ter deixado Bia na casa dos avós, sentindo por sua vez um pouco de frio, André pegou o blusão, aspirando o perfume que ali se impregnara. Que cheiro era aquele? De terra, de chuva... lembrava jasmim, lembrava petúnia... E o cheiro não saiu mais da sua cabeça. Bem como sua voz, que parecia falar por ele, por alguma parte sua esquecida, adormecida, mas não totalmente morta... Respirou fundo, sentindo-se despertar. Há muito tempo que algo não o atingia com aquela força. Gente metida a rebelde, fazendo discursos vazios, via todo dia. Gente que, crescendo, mudava seu ponto de vista, conforme a melhor oferta... Mas... nas palavras daquela guria havia algo... uma filosofia, um sentido de vida... princípios e valores tão sólidos quanto... o Morro de Santa Teresa. Ia dizer um edifício. – "Tá... já tô pegando o jeito..." – pensou, sem deixar de rir. E deixou o pensamento correr, lembrando de si quando criança. O que mudara?... teria ele recebido uma oferta melhor?... E uma nova visão da moça intrometeu-se entre seus pensamentos tão sérios. Agora eram seus magníficos ombros, que, com as "saboneteiras" à vista e os belos peitorais, davam-lhe um porte de rainha.
Pela primeira vez, depois de muitos anos, sentia-se animado, vivo; esquecido das precoces responsabilidades e preocupações.

domingo, 23 de maio de 2010

Pouco depois, passando pelo extenso e bonito Menino Deus, a conversa voltou a ficar animada.
- Que loucura esses prédios gigantescos... não bastando nos deixarem sem o ar fresco do Guaíba, ainda por cima, descaracterizam a cidade... – mostrou Bia, sem perceber o sorriso amarelo do moço, que acabara de virar para o outro lado.
- Só que... se a gente for contra o progresso, daqui a pouco vamos ter que voltar ao carro de boi...
- O que não ficará muito longe da realidade das carroças... na nossa Mui Leal e Valorosa.
- É verdade, tenho que concordar. Que coisa grotesca! Absurda! Os pobres animais em meio ao trânsito de uma cidade grande. É medieval... andando em pistas apertadas, nas horas de pique, com cargas pesadíssimas... Dá dó.
- Eu não sou contra o progresso, claro... veja o modo como a gente se conheceu... – lembrou. – O que me incomoda é esse crescimento desordenado e aleatório... como se não houvesse um plano diretor... Até há, dizem... mas não parece.
- Você tem toda razão. Essa coisa de memória, de preservação das características básicas e essenciais de uma cidade, que fazem com que ela seja única, reconhecível e não qualquer outra é muito importante. Na Europa, de maneira geral, nem se fala. Quando penso naqueles prédios históricos, alguns em estilos góticos, totalmente restaurados, detalhe por detalhe... Nos Estados Unidos o pessoal também sabe preservar direitinho o seu patrimônio cultural. O café que tal escritor costumava frequentar, a mesa, a cadeira que ele sentava... estão lá até hoje... é incrível! Vivi lá um tempo e constatei isso com meus próprios olhos.
- Sem dúvida, são essas referências que formam a identidade de um lugar, fazendo com que o povo ajude a preservá-lo. O oposto daqui, que acaba virando uma cidade sem dono, sem identidade... como é que depois não querem ver monumento pichado?...
- Ou levado... – e riram ambos, recordando-se das ameaças do pai de Bia.
- Sem uma identificação fica uma terra fantasma... vazia de lembranças...
- O descaso gerando o descaso...
- Taí uma coisa que não entendo. Hoje em dia as pessoas têm muito mais informação, mas parecem não se importar muito com as coisas...
Num relance, duas fagulhas de indignação, escapulidas, inconsequentes, de um e de outro olhar, acabaram por se encontrar, sincronizando em ambos algo parecido a uma descarga elétrica.
- Talvez por isso mesmo, decerto ficam tontas com tantas coisas... – respirando fundo e recuperando a razão, a tempo, respondeu André, enquanto aproveitava para abrir a garrafa de vinho que transpirava a seu lado num balde de gelo.

- Tantos apelos, tanto consumo... – voltava Bia.
- É... aquilo que a gente falou nos emails, muito apelo sexual...
- Muito apelo para o ego... para o mundinho egocêntrico de cada um...
- Faltam valores...
- Generosidade... consciência...
Havia riso, havia confiança, havia entrega, parecendo ora o reencontro de dois amigos queridos, ora a euforia de desconhecidos mascarados em clima de folia pagã. Alegres por descobrirem entre si tantas afinidades.
(Take Five)
- Por essas e outras é que já me tiraram até pra gay, porque eu não saio dando em cima da mulherada feito louco... – confidenciou André, imaginando esquiadores invisíveis nos sulcos traçados na água pelo barco. – “Efeitos do vinho”, redimiu-se.
Bia deu uma gargalhada escancarada – Por essas o quê? – apimentou um pouco, para logo continuar: – Nos anos sessenta, setenta, sei lá, sexo era um estandarte da liberdade. Hoje é consumo, banalidade.
Depois de alguns minutos de silêncio, ainda de olhos postos nas águas, como se falasse consigo, retrucou André:
- Não que não seja bom...
O Velho Guerreiro, para dar uma força, ou porque estivesse em manobras de acostamento nas escoladas mãos de Domenico, deu uma sacolejada, jogando um contra o outro e fazendo suas mãos e braços confundirem-se, roçando-se levemente.
- Acho que é hora do almoço... vamos atracar... essa é a bela Vila Assunção.
Empolgados pelo papo e pelo mútuo deslumbramento, não viram o tempo passar. Logo desceram todos, com Bruno e Victor à frente, abrindo caminho em direção ao restaurante.
Daí a uma hora retomaram, pondo-se ao largo, em direção a Belém Novo.

Quase três horas depois voltavam.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

2º Movimento – “Navegar é preciso, viver não é preciso.”

O sábado surgiu com o frescor de uma promessa. Num céu de Simpsons, Bia, com um vestido xadrez em azul clarinho e branco, acinturado, com ampla saia e chapeuzinho, lembrando muito os trajes dos anos cinquenta – para fazer uma brincadeira com André, que havia dito apreciar tudo o que se relacionasse com aquele tempo –, saiu à porta para receber o avô que chegava com Bruno, que, depois de ficar bem paradinho por poucos instantes para que Bia lhe colocasse uma fita azul da cor do vestido, exibiu-se todo frajola, parecendo dar-se conta de que fazia par no figurino com sua adorada dona.
Tadeu, o primo de onze anos, já tinha programa para aquela tarde; mas Armando os levaria até lá, aproveitando para dar uma conferida no tal rapaz.
“Adoro outubro, adoro a primavera” – disse Beatriz para si mesma, ao receber os primeiros raios de sol na porta de sua casa.– Vamos Bruno! – e correu, puxando seu fiel escudeiro para entrarem no carro. Estava bem animada, e, com o ventinho que entrava pela janelinha quebra-vento, foi tomada por uma agitação, que lhe dava, às vezes, um arrepio de prazer na base da espinha. O cachorro, que adorava passear de carro, ocupava uma das janelas da trás, com a cara quase pra fora. E Armando, bem eloquente naquela manhã, estava feliz de poder fazer algo pela neta.

A passarela da marinha do clube, não fosse por algumas garças e uns biguás, os quais Bruno – ignorando as leis de boa vizinhança, e sem a mínima noção sobre a etiqueta do bom visitante – espantou, mas que teimosa e obtusamente retornaram, estava praticamente deserta àquela hora. Apenas, aqui e ali, alguns homens, consertando alguma coisa ou iniciando os preparativos para a partida. Sentado num tamborete, com as longas pernas espichadas para frente, todo de branco, moreno, tostado de sol e lindo... deixando Bia de garganta seca e coração disparado, estava André.

- Jay Gatsby... – falou baixinho, gracejando e recuperando um pouco do controle.
Com um sorriso que tentava desmentir o embaraço, percebido na maneira como esquecera de tirar as mãos do bolso por alguns segundos... acabou desencilhando-se, e, de forma tranquila, tocou de leve o braço da moça. Sem saber bem o que estava fazendo, deu-lhe um beijo em cada face; quase sem sentir o prazer do toque, de tão ansioso. No segundo beijo – imperceptível para quem olhasse de longe, e inegavelmente para Bia – demorou-se uma fração de segundos a mais.
- André!
- Bia!
- Esse é o meu avô, Armando.
- Muito prazer – falou o jovem, com um sorriso franco e um olhar tão honesto que deixou Armando em paz. (“Quem vê cara, não vê coração” – diria Teresa, na volta. Mais para provocá-lo, já que acreditava firmemente no julgamento de Armando).
- E esse é Bruno, meu guarda-costas... que vai fazer o seu debut nas águas. Veio o menino?
- Ah, sim, entrem, por favor... vou lhes apresentar Domenico – disse André, dando passagem aos três, e com carinho oferecendo a mão a Bia. Sob o escrutínio de Bruno que, rosnando de leve, mantinha os olhos no inimigo.
- É esse o tal barco, então? – perguntou o avô. – Imponente! Sossega, Bruno – falou, entre dentes, só para o cachorro, e dando uma risada em seguida.
- Sim, esse é o Velho Guerreiro! E esse é o Capitão Domenico. Domenico é chileno; quando era marinheiro, navegou pelo mundo inteiro, já esteve até na Rússia. Agora é o nosso comandante. E esse é o seu subcomandante, o Victor, Victor Hugo, seu filho, repetiu, destacando bem o “c” de Victor e mostrando o menino que, surpreendido e radiante, ao dar de cara com Bruno, foi logo passando a mão em sua cabeça, sinal de que ali uma sólida amizade estava se iniciando. Aproveitando para desenferrujar o espanhol, Armando tentou se comunicar com Domenico na sua língua natal, e Victor Hugo levou Bruno para conhecer o barco.
Não tardou muito, Armando, pedindo licença e desejando a todos um bom passeio, retirou-se.
- Mas não vai junto? – perguntou André, amável.
- Fica para outra vez, só vim trazer a princesa. Bruno! Te comporta! – falou, indicando, com o olhar dirigido à neta, que o “conselho” não era somente extensivo ao cachorro.
E já Domenico começou a soltar as velas, aproveitando o vento que vinha batendo, para a desatracagem.
- Todos a bordo! – gritou, com seu acento espanhol, fazendo Bruno latir e Victor estampar uma cara de faceirice.
- Dá licença só um minutinho que vou dar uma mão pro Domenico. Nessa hora, uma ajuda cai bem. Já volto.
E Bia ficou a contemplar o espetáculo dos dois homens inclinando-se e recurvando-se, no trabalho com as grandes velas. De relance, percebeu os músculos do rapaz, e isso a agradou. Havia beleza em seus movimentos, um misto de leveza com vigor, que a fez recordar um bailarino russo no papel de Romeu de Prokofieff, que vira uma vez no Teatro Municipal do Rio.
Dali a pouco, ganhavam velocidade, e, por falar em dança, parecendo que, entre o barco e o vento, dera-se o necessário entrosamento, tal qual certos pares de dançarinos de ritmos populares, que só depois de alguns compassos de desacertos, conseguem afinal entrar em harmonia, sentindo o mesmo ritmo, interligando-se na mesma cadência, até se tornarem um só.
O menino e o cachorro, com olhares de encantado espanto, e marejados de vento, iam duros como estátuas, tentando não perder nada da paisagem náutica.
Num minuto, retornava André para o lado de Bia, surpreendendo-a em seus devaneios.
- Gostei da sua roupa...
- Eu também!... – e deu um suspiro, logo se dando conta e recompondo-se. – Quer dizer, gostei da sua... e que luxo, hein!... – exclamou, dirigindo o olhar ao elegante veleiro de porte médio que rebrilhava, com seus frisos dourados nas laterais. Me sinto a própria Jackie Onassis.
Ele riu, finalmente mais relaxado, emendando:
- É... o legal desse barco é que ele é veleiro, mas também tem motor. A gente pode se divertir, praticando um esporte, e, em dias de pouco vento, sair igual – e solícito, mudando de assunto - Quer um copo dágua? Será que eles querem? – perguntou referindo-se aos dois pequenos e desaparecendo nas dependências internas, para voltar em seguida com água para todos. E logo ouviu-se a voz de Billie Holiday, à qual rendeu-se Bia, fascinada.
- Puuuuxa!...
- Gostou?
- Não sabe como!... Obrigada. Assim vou ficar sem jeito, pois não trouxe nada...
- Trouxe o que era suficiente... – justificou-se, pondo no olhar uma intenção que não passou despercebida, e pagando a ousadia com um rubor. O que a comoveu. Não que não gostasse dos homens mais atilados, desinibidos, mas sabia reconhecer o encanto que havia nos tipos mais sensíveis, os “enrolados”, como diziam suas amigas. Os que não tinham necessidade de competir e nem de provar nada, pois isso abria um mundo de possibilidades...
- É a primeira vez que saio num veleiro... – retomou, rompendo o breve embaraço. – Tava pensando... quanta gente vive nessa cidade e desconhece esse lado, toda essa beleza...
- E o começo de tudo... desde os primeiros habitantes, que vieram para cá em função das águas, não é mesmo?... A propósito, porque Obirici?...
- Ah, ah, ah... Você não vai acreditar, é uma coisa muito engraçada... uma coisa de família. Olha só... – e relatou a história, incluindo a parte das gozações.
- Veja só... mas não é que parece mesmo uma índia!... o cabelo, os traços... e essa história... – e logo, readquirindo o tom alegre de sempre – Desculpe o humor negro, mas, sem querer ser muito pessimista... do jeito que a coisa vai... água, no futuro, nem chorando...
- Ah! – mais do que uma risada, Bia deu um esgar, seguida por uma pantomima de tentar jogá-lo na água. – E Irajá? Vem de onde, ó terrível ser das profundezas...
- Irajá é um dos nomes de um tio meu – explicou, sorrindo. – Na hora de escolher o nick, foi o primeiro que me veio à cabeça. Depois fui ver o significado... Em Tupi quer dizer ninho de abelhas... ou seja colméia. Achei legal...
- É... combina... – pensou a garota, desejando provar aquela doçura.
E o veleiro, nas mãos hábeis de Domenico, como se entendesse seu papel de condutor de um romance florescente, parou de jogar, principiando a deslizar suavemente, enquanto diminuía a velocidade e enveredava-se pelas pequenas ilhas de vegetação nativa e espessa, que evocavam seres invisíveis e reinos de fantasia. Por algum tempo, todos se postaram em silêncio, sentindo nada mais que a refrescante brisa e o tépido sol de primavera. Com um esticar dos braços, podiam roçar os salgueiros chorões das margens. Bruno, de vez em quando, fazia-se ouvir em latidos curtos, como que saudando as árvores. Victor contava segredos em seus ouvidos... planos de batalhas contra terríveis piratas? Dali a pouco, mudando de ritmo e recuperando o ímpeto, o barco navegava altaneiro. Logo contornou a ponta do Gasômetro em direção à zona sul, aumentando nos passageiros a expectativa e o deleite da esplêndida aventura.
- Sempre que posso, venho para cá. Aprendi a velejar quando tinha dez anos, com meu pai, quando compramos nosso primeiro barco. Agora, venho mais nos fins de semana, quando não há prova ou o trabalho me permite, e em geral sozinho. Amo as águas, o rio, o mar... Na verdade, se pudesse, estava fazendo biologia marinha ou oceanologia. Quem sabe um dia... – e seu olhar, um pouco triste, perdeu-se nas águas. Para logo se animar. – Vem, Bia, vou te mostrar o barco.
Descendo para a parte interna, conduziu a moça a um pequeno conjugado de sala e cozinha.
- Você quer alguma fruta? – ofereceu, mostrando uma belíssima cesta com maçãs, uvas, pêras, pêssegos, ameixas e kiwis. – Ou quem sabe... um vinho branco geladinho? – perguntou, já tirando duas taças do armário. – Pegue algumas frutas para as cri... quer dizer, para o Victor e... para o Bruno, deixa ver... – falou, abrindo um armário e tirando dali uma lata de biscoitos... acho que ele gostará disso.
Bia divertia-se, admirando-o na função com os lanches. Por trás da gentil solicitude, e da quase imperceptível timidez, transparecia um discreto e sutil refinamento.
Com os lanches prontos, voltaram ao convés.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

(Irajá): Ilhas: Vc não acha q já é hora da gente se conhecer? pessoalmente, digo... pelas previsões meteorológicas, parece q ñ tem erro... e... bem... o q vc acharia de um passeio de veleiro pelo Guaíba? Iríamos nós e o meu comandante... o Domenico, uma figura, cheio de histórias para contar. Normalmente ele leva seu filho, um garoto de oito, nove anos, mais ou menos... Gostaria?
(Obirici): Dia de sol, festa de luz...: Tá falando sério? Pô, que idéia genial! Claro, eu adoraria! Só fiz esse passeio, quer dizer, aquele do Cisne Branco, uma vez, e achei incrível a cidade vista por esse ângulo. Pode ser nesse domingo, sim.
Durante essa primeira fase, de comum acordo, decidiram conhecer um ao outro sem pressa, e da forma mais natural possível. Deixando, inclusive, de trocar fotos ou de se falar ao telefone, para garantir a surpresa e o frisson do primeiro encontro.

Na sexta até que André tentou dar uma saída com os amigos. Mais desligado do que nunca, num determinado momento, como que “acordou”, percebendo os olhares e os risos.
- Tá viajando, cara?... – cutucou Léo, seu melhor amigo.
- Há horas... – falou Mateus, outro velho camarada.
- Acho que ele tá apaixonado – pescou Marta, uma das gurias que freqüentava a roda das sextas.
- Pior, deve ser estafa, acho que vou me retirar... – disfarçou, olhando o relógio.
Na ida para casa, dando uma carona para Léo, contou a história.
- ...e amanhã vou levá-la para um passeio de barco.

Beatriz, tentando fazer com que o tempo corresse para ver chegar logo o dia seguinte, foi à casa da avó. De Teresa não podia esconder nada, era como se ela lesse a sua alma.
- Novidades?... Sinto que há algo no ar, além desse perfume de gardênias!... – e, com seu jeito descomplicado, fez a garota se abrir.
- Ah, Vó... ele parece legal... E eu sei que a gente não pode ter preconceito, mas tenho medo que o cara seja um filhinho de papai. Tem até iate, veleiro, sei lá... detesto boy!
- Ih, guria, era só o que faltava. A gente ter te deixado com preconceito ao contrário... – e deu uma gargalhada, concluindo, irônica: – Ninguém tem culpa de ter nascido rico. O que importa é o quê o cara faz do seu dinheiro, como conduz a sua vida... tem muita gente decente que batalhou para ter o que tem, também não dá pra radicalizar... Seja como for, sinto que aí tem coisa... quente!!! – e mudando a expressão para uma cara apreensiva: – Mas vais... sozinha?... te encontrar com ele e com esse tal funcionário?... Isso sim me preocupa. Não o conheces bem ainda... que tal se alguém te acompanhasse até lá? Hoje em dia...
- Bem, posso convidar o primo Tadeu, ele até vai se divertir com o tal garoto – e acendendo um brilho divertido no olhar, lembrou: – E o Bruno?Que tal se eu levasse o Bruno?... – e Teresa riu mais ainda. Aquela era a sua Bia! Tão criança ainda, a ponto de querer levar um cachorro num primeiro encontro!
– Mas acho que a gente não precisa mesmo se preocupar, bobagem minha. É claro que ele é do bem... Um boy não ia gostar das músicas, dos filmes e das séries que ele gosta... e muito menos um psicótico! – e foi a sua vez de sorrir, balançando a cabeça e recuperando o natural entusiasmo.
Balançando também estava o rabo de Bruno, que sentando à sua frente, ofereceu-lhe uma bola, convidando-a para brincar. Este, era um dos três vira-latas recolhido das ruas pela então menina, que, para ele, seria sua eterna dona. Ficava com Teresa e Armando, pois ali poderia ser mais bem cuidado, já que, na casa de Bia todos ficavam fora a maior parte do tempo. Mas como moravam pertinho, Bia não passava praticamente nenhum dia sem visitá-lo. Mal chegava, ele começava a pular a seu redor, fazendo-lhe festa, babando um pouquinho e trazendo todos os seus tesouros para depositá-los a seus pés, como um sinal de eterna gratidão: um chinelo de Armando, um pedaço de pau ou até um osso. Dessa vez, era uma bola. Sempre alegre, tão bom de brincadeira como de guarda, ao menor sinal ou som que entendia como perigo,saia levantando as orelhas e pronto para o ataque. Depois de ter se exibido de todas as maneiras, agora repousava a seus pés, de barriga para cima.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Irajá, cujo nome mesmo era André, filho de Marta e Maurício D. Battistini – este, engenheiro e presidente de uma das maiores companhias construtoras da cidade –, além de fazer administração, há tempos já trabalhava na empresa da família, sendo o braço direito do pai. Com um precoce senso de responsabilidade, e por irmãos, uma dupla que, o que não tinha de talento para dar duro, tinha de sobra para gastar, e esbanjar a verba paterna, com pesar, acabou adiando o sonho de fazer oceanologia ou biologia marinha, ciências que o deixavam perto de sua verdadeira paixão: as águas. Mas desde quando paixões deveriam ser ouvidas?... Sabia como fora duro, para seus bisavós, o começo nessa nova terra. E seu avô, com um bom tino para os negócios, inabalável dedicação, e obstinada coragem, criara a empresa. Que, no início, oferecia apenas mão de obra e confiabilidade; e depois, com Maurício já formado em engenharia – com muito sacrifício, empenho e grande satisfação de seus pais –, além dos valores já estabelecidos, modernas e inovadoras técnicas – vindo mesmo a tornar-se uma referência no ramo da construção civil. No sobe e desce da economia, sobrevivendo a tempos difíceis, e outros nem tanto, seu pai soubera mantê-la, formando o patrimônio atual. Com isso, a André não cabia outra coisa que continuar o que até ali fora feito. Mas, dentro de si, em algum lugar sagrado e impenetrável, sabia existir um menino inocente, até certo ponto crédulo, e cheio de expectativas. Morando com os pais e os irmãos no elegante bairro de Três Figueiras, entre a administração e a empresa, por ora desafogava um pouco a pressão, velejando pelas águas do Guaíba. Sentindo os caprichos dos ventos, adivinhando as virações, descobrindo e aventurando-se em pontas e ilhas, além de deixar-se levar em tardes de calmaria pela brisa que docemente tocava seu rosto e arrepiava seus pêlos, enquanto assombrava-se com o sempre renovado espetáculo do pôr do sol, era como mantinha o elo com seu sonho distante. Já na vida social, por gostar muito de música, não fazia feio nas pistas; mas, ao contrário dos outros membros da família, fugia, na medida do possível, das colunas sociais das quais eram assíduos. Na verdade, sentia que sua vida estava em compasso de espera.

O aparecimento de Obirici na sua tela foi como um sinal de que alguma coisa, afinal, começava a fazer sentido. Todavia, como a criança, que tendo medo que lhe tirem o brinquedo que acaba de ganhar, evita afeiçoar-se muito a ele, tinha medo de entregar-se por inteiro a qualquer sentimento.
Até que, vendo chegar mais um fim de semana de primavera, e, com as previsões meteorológicas sinalizando um tempo estupendo, arriscou:

domingo, 2 de maio de 2010

Capítulo VI

(Irajá): Olá!: Não sei se levo jeito para esse tipo de abordagem... enfim... naquela linha Seinfeld, q vc gosta tanto (eu tbém), enqto ia preenchendo o meu cadastro, pensava quem seria tão louca a ponto de me responder? enqto, ao mesmo tempo, pensava q eu ñ poderia ter alguma coisa com esse tipo de gente. Agora, falando sério, é um prazer encontrar algo mais do que “chapinha” na cabeça de uma guria...
(Obirici): re: Olá!: O q seria de nós sem o Seinfeld, o W.Allen, o Veríssimo... eles escancaram as nossas neuroses!!! e pior! fazem com que morramos de rir delas, o q me parece bem terapêutico... O Seinfeld tem ainda o mérito de ter elevado o padrão geral das sitcons... depois dele, todas tiveram que se puxar... Qto aos guris, nem “chapinha”...
(Irajá): caso perdido: Minha irmã diz q eu deveria ter nascido no séc. passado. Fica de cara qdo entra no meu quarto e ouve as big bands... veja só...
(Obirici): clãs: Concordo.Tbém amo o jazz e as big bands, mas em matéria de época, se eu pudesse, gostaria de viver nos anos 60... Parecia q sempre havia algo importante acontecendo, e se não havia, eles tratavam de inventar: os Beatles, maio de 68, os protestos contra o Vietnã, aqui, toda a participação dos estudantes na política... o pessoal era mais engajado, hoje parece q estão demasiadamente voltados aos objetos: é o celular, é um sem número de traquitanas, q o q oferecem em tecnologias, deixam a desejar em termos de conteúdo...
(Irajá): túnel do tempo: menos mal q é para os anos 60 q vc quer voltar, e ñ para os 80 (até hoje me surpreendo com aquele visual...).
(Obirici): Os cabelos ou as semi-bags??? Se existe inferno, tenho certeza de que no primeiro nível as pessoas estão vestidas daquele jeito.

Das conversas casuais, que aconteciam a cada dois ou três dias, o papo passou a ser diário. Num feriado, em que “Irajá” havia bebido umas cervejas a mais com os amigos, descontraído, carente, e meio incomodado com a futilidade das garotas que encontrara na noite, chegando em casa, mandou:
(Irajá): Abrindo o jogo: Você é real?... Existe mesmo, ou é aquela índia do monumento, que, vestindo um jeans, sai para dar uma volta, indo até o cyber-café mais próximo – de onde me manda uma mens – e depois volta para lá?
Bia, que também voltara mais cedo da festa “cheia de gente vazia”, antes de dormir resolveu conferir as mensagens.
(Obirici): Abrindo o jogo: re: Puxa, acho q vc adivinhou o meu segredo... – ia colocar: “só fico te devendo os jeans... aliás, o q é q vc tem contra penas e tangas?” – mas desistiu da provocação... não queria passar a imagem de guria atirada...
Uma noite mais ou menos mal dormida depois:
(Irajá): Álcool ñ faz mal só pra quem dirige, acho q ontem me passei um pouco...
(Obirici): Tá desculpado... afinal... hoje é dia das crianças!... Mas, além de dia das crianças é o dia em q se comemora a “descoberta da América”... por Cristóvão Colombo... mas q se chama América pelo Américo Vespúcio. Tá, isso, no mínimo, já dá samba, mas vc ñ acha engraçado (seria melhor dizer patético) q haja um mérito em alguém descobrir uma terra q já estava pra lá de descoberta?... quer dizer habitada, e bem habitada?... Imagina se fosse ao contrário, se a Europa fosse “descoberta” pelo primeiro índio q aportou por lá?... inclusive com direito a mudança de nome...

E a coisa foi rolando...

sábado, 1 de maio de 2010

Capítulo V

O afeto que Teresa e Armando tinham por Bia, mais até do que pelos outros netos – os filhos de Bárbara –, não podiam negar, era retribuído integralmente. Ela amava os pais, mas adorava os avós; sentindo com eles, e especialmente com a avó, uma identificação que parecia vir de muito longe. Ainda pequena, fazia-lhe companhia nas reuniões da associação, conhecendo precocemente o doce significado da palavra cidadania.

Por volta dos quatorze, Beatriz descobriu que arco e flecha não eram somente peças de museu ou elementos de decoração, mas um esporte muito interessante, que constava, inclusive, dos Jogos Olímpicos – como explicou, naquela tarde de ventania, ao chegar alvorotada em casa. Sem pensar duas vezes, matriculou-se num curso, revelando-se, com o passar das semanas, bem talentosa, para surpresa e satisfação de seu instrutor. Incentivada por ele, resolveu participar, vencendo até, vários torneios.

Além do arco e flecha, gostava de se enfeitar com penas, conchas e outras peças do bonito artesanato indígena que adquiria com os índios que apareciam nos domingos, no Brique da Redenção. Chegou até a pensar em estudar Tupi-guarani, mas deixou a idéia para mais tarde. Adorou Quarup, de Antonio Callado, que não sossegou enquanto não chegou ao fim – presente de Natal de Armando. No aniversário, recebeu, da avó, Maíra, do Darcy Ribeiro.
Pelos dezessete, tendo estudado a recente história do país, e querendo saber mais sobre o envolvimento do avô com a política, curiosa, pediu que a avó a acompanhasse a algumas reuniões partidárias. Não se emocionou, no entanto, nem um pouco com a militância política. Na primeira reunião, quase sufocou com a fumaça dos cigarros, aborreceu-se com os discursos, cuja maioria, na sua opinião, não passavam de um desfile de egos, e odiou a mania das churrascadas e comilanças, que, mais do que reunir e fazer pensar, pareciam embotar os cérebros. Ainda mais que já fazia um tempo que resolvera tornar-se vegetariana. “Por mim é que os bichos não vão passar por todo aquele sofrimento... além do mais, quem gosta de sangue é vampiro... – discursava, firme e provocadora. – Sem contar que essas queimadas, pra fazer a mata virar campo de pastagem, entre outros fatores, vão acabar transformando o Rio Grande num imenso deserto.”
- Não tenho dúvida... – reforçou Armando, num dia de verão que mais parecia uma fornalha. – Estamos diante da maior seca dos últimos setenta anos... tá aqui no jornal.
- É... e não adianta empurrar esse problema para as futuras gerações – considerou Teresa.

E assim ia Bia, descobrindo o mundo, com todas as suas belezas, maldades, contradições, esperanças, infâmias e generosidades...

Agora, com vinte e dois anos, e no terceiro semestre de Arquitetura, começava a querer ampliar seus horizontes... sentimentais. Havia tido alguns namoricos, coisas sem importância, nada que a empolgasse. Achava a maioria dos garotos muito fúteis, e sentia que eles, reciprocamente, tendiam a se decepcionar, já que ela estava longe dos estereótipos esperados... Chateava-se... mas não por muito tempo. A vida lhe beliscava, fazendo-a seguir adiante.
Um dia, sua prima Débora chegou toda animada por ter conhecido alguém bem legal pela Internet. “Quem sabe, pra uma pessoa como tu, que valoriza bastante a parte pensante do sujeito, essa não seja uma boa solução?”
Sem demonstrar muito entusiasmo na hora, contudo, passada uma semana, encarou a novidade.

Precisava apenas de um nick. E como em tudo o que fazia, entrava pra valer, esse, tinha que ser especial, algo que a definisse, que captasse a sua essência.
- Não estás deixando o teu legado, Bia... é apenas um cadastro num site de relacionamentos... – zoou Débora.
E ao final de quase uma semana de encucação para encontrar o tal nome, numa tarde, passando de lotação pela estátua da Obirici, deu-se conta. “É claro... é perfeito!”

De nick em punho, foi dar uma olhada na “oferta”. Depois de encontrar todo o tipo de coisas estranhas e quase desistir, lá pela quinta tentativa, encontrou um rapaz bem interessante, diferente daquele “mar de mediocridade” – como definiu o chat. Um rapaz que, por coincidência, parecia ser até da mesma tribo: seu nick era Irajá. Mas ficou na dela. Dias depois, digitado decerto pela própria mão do destino, não é que o rapaz – além de outros três – respondeu?...

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Capítulo IV

AMOR CERTEIRO – A lenda urbana de Obirici – III Parte

1º Movimento – Mocinhos e Bandidos

Como dizíamos no capítulo anterior, felizmente, a trágica, e não menos bela, história da índia Obirici não se encerrou na fantástica metamorfose. E, muito menos, em monumento ou viaduto. Pois quase dois séculos depois, precisamente em março de 1943, na rua Tapiaçú, no mesmo bairro do Passo da Areia, chegou ao mundo Teresa... descendente de Pedro e Obirici.
Que, por ter herdado decerto o coração nobre e sensível de sua antepassada, casou-se, anos depois, com Armando Capuano – homem igualmente digno e altruísta –, muito próximo a Brizola, no velho PTB, e que, decerto por isso, nos anos de chumbo, viu-se obrigado a exilar-se com a mulher no Uruguai. Com eles, seguiram Lucas e Bárbara, pequenos neófitos nos méritos e nas agruras dos ideais e das militâncias. De volta, justamente nove meses e um dia depois da alvoroçada chegada de Brizola ao Rio, e de uma festa em que Lucas, agora um jovem emedebista, compareceu representando o pai – que decidira pendurar decisivamente as chuteiras revolucionárias e reabrir seu consultório de advocacia, mais de acordo com sua índole tranqüila e seu caráter pacato –, nasceu Beatriz, o mais novo membro da família. Sem negar as origens, no exato instante em que Teresa – cheia de idéias, e ainda com muita disposição para tentar mudar, senão o mundo, pelo menos seu bairro, depois de meses de luta, e sem saber que a neta, antecipada, acabara de nascer – comemorava, na associação comunitária, a vitória na luta pelo aterro do valão, deu seu primeiro grito de vida. Do valão que já havia sido um dos braços do antigo Ibicuiretã, o rio de areia, o rio das lágrimas de Obirici por seu amor...
(E onde pouco depois se construiria o Shopping Iguatemi.)

Beatriz – uma espécie de miniatura da avó, ou o mágico resultado de uma fusão de raças muito bem feita –, desde pequena, já exibia, além dos cabelos lisos e negros dos antepassados, uma rara combinação de sensibilidade – que à primeira vista poderia ser confundida com timidez – com determinação; a par de uma inteligência incomum e de uma generosidade que parecia se estender a todo e qualquer ser que habitasse esse planeta. Para matar um mosquito ou espantar uma mosca, era um custo. Pescaria, nem pensar. Certa vez, com apenas dois anos e meio, num veraneio em Arambaré, mal tendo avistado um homem, que inocentemente pescava um pouco adiante de onde tomavam banho, correndo em sua direção, e sem que pais e avós pudessem contê-la, com a autoridade de um magistrado, ordenara: “Home! Os peixes são do rio! Não pode tirar eles daí!”. O pobre, embasbacando-se diante daquela fedelha metida a defensora da natureza, e que nem falar direito sabia, não teve outro remédio que devolvê-los às águas, e, sem dizer palavra, foi-se embora, matutando sobre as surpresas da vida. Cachorro preso, então, era um escândalo! A pequena parava diante da porta do dono algoz e abria o berreiro, só parando de chorar quando o monstro tivesse libertado o pobrezinho. Cachorros de rua, já levara três para a casa dos avós, os quais, Armando, que não podia negar-lhe nada, adotara, terminando por andar com o trio, para cima e para baixo, em suas voltas pela vizinhança.
- Em outra vida essa menina foi tibetana – considerou Teresa, que entre uma militância e outra, começara a interessar-se pela teoria da reencarnação e pelo zen-budismo.

Bia, como acabou sendo chamada, parecia, em certos dias, emanar frescor e brisas de primavera, que exorcizavam medos, dissabores ou tristezas, guardados nas lembranças ou presentes no inevitável cotidiano. Em outros, surgia como um dia pleno e ensolarado de verão, fazendo brotar risos e reafirmando certezas. Mesmo naqueles em que entrava porta adentro feito um furacão, fustigada pelas injustiças do mundo, e discursando incendiários manifestos para a espantada e não menos divertida família, não perseverava nas insalubridades do mau-humor. Sua indignação tinha endereço certo, e, seu ultraje, justificativa; daí que, passado o impulsivo momento, recuperava o equilíbrio, dedicando-se a encontrar uma saída para o problema.

Quanto aos planos para o futuro, diferentemente da maioria das garotas, que sonhava em ser, um dia, bailarina, advogada, médica ou cantora, quando abordada sobre o que gostaria de ser, desde os quatro anos de idade, respondia, invariavelmente: “Índia!” “Índia?” – admirava-se o interlocutor, pensando não ter ouvido muito bem. “Índia! Índia!” – repetia a guria, mais alto, pensando tratar-se de algum surdo. No Carnaval, aproveitava para matar a vontade de, pelo menos, vestir-se como uma. A cada ano, uma nova fantasia – das mais variadas tribos, daqui, ou da América do Norte, que ela diligentemente procurava nos livros e fazia a mãe ou a avó providenciarem com alguma costureira.
Para isso de querer ser índia, contribuira um relato, entreouvido numa conversa de adultos. Teresa contara que sua avó, que adorava juntar a criançada para narrar histórias, falara certa vez em Obirici, afirmando serem eles descendentes diretos da índia, ou, mais precisamente, do irmão de Obirici, já que esta, ao morrer transformando-se em rio, não deixara, é claro, nenhum descendente. Teresa lembrava-se de ter passado aquela noite, em que ouviu a narrativa, acordada, maravilhada... Assombrada pelo fato de serem parentes de uma índia que virou rio...
- E o triste de tudo, é que hoje, aquele rio, se de fato nasceu das lágrimas de Obirici, tornou-se um valão e foi aterrado... – concluiu.
- Mas não completamente – revelou Lucas. – Ainda existe outro braço, é menor e fica meio oculto... Quer dizer, pelo menos existia quando eu era piá. Muito banho tomamos ali, eu e a molecada.
- Tens razão... agora me lembro. Tomara que não tenha o fim do outro – ponderou Armando.
- Tomara... – suspirou Teresa.

Lucas, entretanto, quem sabe por ter puxado à parte mais cética da família, ao escutar a história, em outras ocasiões, acabava levando a coisa para o lado da brincadeira. O que não o impediu de, certa feita, num aniversário, ao perceber o descaso e a zombaria de um homem que recém soubera da história, naquele jeito pausado e levemente irônico, e com a calma que havia herdado de Armando, considerar:
- Engraçado... quando alguém diz descender de político, general, ou até mesmo de conde ou marquês, parece ser levado mais a sério... quando não, até respeitado... ou reverenciado. No entanto, em se tratando de índios, que supostamente devem... ou deviam ter igualmente suas figuras de importância, isso acaba gerando um tanto de descrença e outro tanto de desprestígio, quando não de galhofa... – declarou, olhando meio enviesado para o incauto – que, percebendo a gafe, instantaneamente mudou o tom, chegando a considerar a história, além de factível, muito interessante...
A pequena Bia, que acompanhava a conversa, fingindo dedicar plena atenção às adoradas bonecas de papel que herdara de Teresa, sentiu naquele instante um enorme orgulho do pai; entendendo que, mesmo sem se empolgar muito pelo fato da lenda poder ser um patrimônio da família, ele não deixava de respeitá-la, com isso, respeitando também seus antepassados. Mas, em conversas com os mais íntimos, Lucas prosseguia com a galhofa. Entre outras coisas, jurava que ainda mandaria construir uma réplica da estátua da índia para colocá-la no jardim da casa dos pais. Com uma fonte. E que iriam, ele e Teresa, qualquer noite, na calada, roubar a Obirici verdadeira para preservá-la de ataques de vândalos, dando-lhe o merecido destaque: quem sabe “plantando-a” na Praça da Matriz ou na frente do Arco do Triunfo, na Redenção. Ao que Armando, no mesmo espírito, replicava, insistindo para que aproveitassem e procurassem na herança de que tanto se orgulhavam, alguns traços genéticos... de loucura...

Um dia, Bia, com nove anos, sentada na soleira da porta da cozinha, com uma gata que havia aparecido por ali no colo, de tanto matutar, perguntou à avó:
- Afinal... é verdade?
- É verdade... o quê?
- Essa... lenda... de que descendemos de índios... de Obirici...
- Bem, que descendemos de índios não é difícil de ver, basta olhar para a tua cara. Quanto à Obirici... já duvidei, questionei... e acabei aceitando. Total... porque não acreditar? Se for verdade, ou mero fruto da imaginação, decidi que vou continuar acreditando. Nós somos descendentes de Obirici, ou do irmão de Obirici, que seja, e pronto! E como eu gostaria que todos os descendentes de índios, que povoam esse nosso Rio Grande, tivessem o orgulho que temos de nossas origens! – inflamou-se.
A garota não disse nada. Dirigindo-se em silêncio à fiel amiga, demonstrou sua aprovação num abraço terno e silencioso.
A avó não passava muito tempo sem se surpreender com a neta...

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Capítulo III

Obirici – II parte – Criada por Rose de Portto Alegre

Acredite ou não, caro leitor – e, se não acreditar, procure as provas e evidências, é seu direito – o fato é que, depois que Obirici morreu de amores, criando com suas lágrimas o Ibicuiretã – ou Rio de Areia –, seu irmão, Iracuí, saudoso e desconsolado com sua perda, resolveu prestar-lhe uma última homenagem: deu à filha, que acabara de nascer, o seu nome. Comprova-o documentos encontrados quase dois séculos depois, por milagre salvos das pragas dos cupins e das traças, e, ao que tudo indica, escritos, de próprio punho, pelo português Pedro, um dos heróis da história.
A pequena Obirici, a cada dia tornava-se mais parecida com a tia – provocando, com isso, lágrimas furtivas no pai. O que, ao mesmo tempo, o consolava. Semelhante nas feições, mas diferente no espírito. Essa, ao contrário da primeira, tinha um jeito mais destemido e aventureiro. Era mais livre, e mais forte. Tanto, que tornou-se comum vê-la passar cedinho em sua piroga, sozinha, em direção ao sul, onde costumava ficar por um dia inteiro, tendo por companhia apenas Tupã e os espíritos das matas.
Os índios sabiam respeitar a vontade de alguém que quisesse ficar sozinho. Com isso, ninguém lhe indagou o que fazia por lá.
Na verdade, ia encontrar os papagaios, porque era lá que eles ficavam, numa grande árvore, balançando-se e conversando entre si. Obirici, também gostava de nadar e mergulhar nas águas limpas e doces daquele rio. Um dia, encontrou um jovem branco, açoriano, que acabara de chegar com seus pais àquela terra.
Os Tapimirins, índios dessa região, diferentemente de outras tribos, não fugiram, não debandaram, nem lutaram, e acabaram, desse modo, convivendo pacificamente com o povo que chegava; já estando, àquela altura, mais ou menos acostumados a ver caraíbas andando por ali. De vez em quando, um grupo de índios, que saia para caçar mais longe, topava com um grupo de brancos, que também andava explorando a região, e era só.
Daí que Obirici não deu muita importância à presença do jovem português naquele dia, naquele local. E, mais vezes, acabou fazendo o seu velho percurso sem vê-lo. Era ela e a natureza. Porém, passou-se um tempo e, outra vez, o jovem estava lá. Agora parecendo fazer parte do lugar. A índia não pode deixar de notar que ele era bem bonito, apesar de branco, e de não usar nenhuma tinta no corpo. Mas seguiu a correnteza e a sua vida.
Na aldeia, na volta, se pegou pensando no português. Quem seria, e o que estaria fazendo; afinal, os caraíbas não costumavam sair da sua aldeia sem um bom motivo, e muito menos sozinhos.
Dali a três dias, Obirici saiu de novo em sua piroga e, nesse dia, como se ouvisse uma algazarra diferente, vinda das árvores onde ficavam os papagaios, resolveu descer e ver o que estava acontecendo. Puxando a canoa até a margem, entrou mato adentro. Andando um pouco, chegou a uma clareira, na qual o rapaz, sentado numa pedra, tocava uma flauta, sem notar que era observado. “Está tocando para os papagaios – pensou a moça –, parece comunicar-se com eles.” – E, escondida atrás de uma árvore, ficou a olhar a cena, fascinada. Aconteceu, no entanto, de um dos papagaios voar e ir parar justamente em cima da tal árvore. Por um instante, e, ao olhar o pássaro, a moça, mexendo-se em seu esconderijo, foi notada pelo rapaz, cujo nome era Pedro.
Naquela noite, antes de pegar no sono, Pedro pensou em Obirici; e Obirici, sonhou com Pedro.
Mais vezes eles voltaram à clareira dos papagaios. Um dia, entenderam que seus espíritos eram irmãos. Pedro, pela maneira como era apegado às coisas da natureza, mais parecia índio do que branco; e, Obirici, tinha uma tal vontade de tudo aprender e de tudo saber, que logo, logo, interessou-se em aprender a língua, e o que mais pudesse, dos portugueses.
E então, tiveram vontade de ficar juntos, após o entardecer; entretanto, acabaram voltando para suas famílias. E outro dia, e mais um, e mais outro, até que entenderam não poder continuar a viver um longe do outro.
Chegando em casa, cada um, com muita calma, equilíbrio e amor, falou com seus familiares. E como ambos eram bastante amados, além de muito respeitados por todos, os pais, apesar do estranhamento, não ousaram ir contra a sua vontade.
Tanto o povo índio, quanto o povo branco, entendeu ser, aquela união, uma benção, uma aliança benéfica, que decerto consolidaria o sentimento de paz que deveria haver perenemente entre as duas nações. Dali a alguns dias, a tribo e a pequena aldeia foram testemunhas de duas cerimônias de casamento: a primeira, na capela improvisada da aldeia dos caraíbas, e a segunda, que na oca central da aldeia tapimirim.
Capítulo II

As Lágrimas de Obirici (versão do original, publicada pela RBS).

A origem dos nomes da maioria dos bairros que formam a capital gaúcha se perde no tempo. Em muitos casos já nem há vestígios dos elementos que serviram para que recebessem a denominação pela qual são identificados até os dias de hoje.

É assim com o Passo da Areia. A areia já se foi há muito tempo. Aquela área da cidade está toda urbanizada.
O passo, até resistiu, mas não faz muito também deixou de existir. Antigamente, quando índios ainda habitavam a região, era um riachinho chamado por eles de Ibicuiretã, que significa “rio de areia”, “água que corre sobre o pó” ou ainda “passo da areia”. Brotava na baixada da Boa Vista e seu leito sinuoso passava pelo meio do areal.
Com a urbanização, o passo foi canalizado e virou um valão. Suas águas tornaram-se sujas e barrentas e atravessavam o bairro espalhando mau cheiro. Com certo alívio, os moradores locais viram o córrego ser aterrado no início dos anos 80, quando ali começou a construção de um shopping center.
Apesar deste fim um tanto melancólico, a origem do Ibicuiretã está ligada a uma linda história de amor.

Quando o homem branco sequer havia pisado naqueles areais, ali se instalara a tribo tapi-mirim, da nação dos tapes. Espremidos entre o Guaíba e morros, volta e meia precisavam defender sua taba com paus, pedras, lanças, arco e flecha de ataques de tribos inimigas. Os tapi-mirins viviam em permanente alerta. E como não tinham cacique, eram comandados por um chefe guerreiro. Se esse chefe adoecia, envelhecia ou morria, cabia ao conselho de anciãos escolher um novo líder para as batalhas que viriam.
Depois de eleito, o chefe, geralmente jovem e solteiro, começava a despertar a atenção das índias solteiras. Aquele que até outro dia era apenas mais um entre os seus, se convertia em um abençoado de Tupã, um escolhido dos deuses. E, assim, suscitava uma disputa entre as donzelas da aldeia. Todas passavam a usar seus enfeites mais bonitos, suas tintas mais coloridas, seus perfumes mais cheirosos. Tudo para conquistar o coração do agora poderoso guerreiro.

Mas com Obirici, uma linda jovem daquela tribo, os sentimentos não funcionavam deste jeito. Desde curumim ela nutria amor por um único índio. Nunca havia confessado sua paixão, no entanto. Amava em segredo, em silêncio, sozinha.
Quis o destino que o índio por quem ela era apaixonada fosse escolhido o chefe guerreiro dos tapi-mirins. Obirici pensou, então, que chegara o momento para se declarar.
- Grande chefe, estou aqui para dizer que te amo. Quero ser tua esposa, passar a vida ao teu lado.
- Tu não és a única a declarar amor por mim, Obirici.
- Outra índia se apresentou como tua pretendente?
- Sim. Ela diz me amar como ninguém mais me amaria.
- Mas eu te amo tanto quanto ela, mais até. E desde sempre. Desde que soube o que era amar alguém...
- Eu acredito, Obirici, mas estou indeciso.

Diante do tímido amor de sempre e da paixão repentina, o índio não soube o que fazer. Foram dias tristes para Obirici. Passou noites em claro, chorando, soluçando, odiando amar.
Como o novo chefe não chegava a uma decisão, ele próprio pediu que o sábio conselho de anciãos estabelecesse uma solução para o impasse. Assim foi feito: as duas pretendentes disputariam um torneio de arco e flecha. A vencedora seria a mulher do chefe guerreiro.

No dia do desafio, toda a tribo reuniu-se para assistir ao grande acontecimento. Nunca a disputa para ser esposa do chefe havia chegado tão longe. Muitos repararam que Obirici demonstrava estar muito nervosa, enquanto que a concorrente parecia ganhar confiança com toda aquela gente como assistência.
Obirici transbordava insegurança. Tremia seu arco, tremia sua flecha, tremia seu braço, suas pernas, seu corpo todo. O mundo tremia em seu redor. Suas flechas atingiam o alvo sem muita convicção, como se tivessem desistido do vôo no meio do caminho.
A outra índia parecia mais afeita ao arco e à flecha. Seus disparos eram precisos, fulminantes, certeiros. Cada flecha sua que acertava o alvo era como se acertasse também o coração de Obirici. Aos poucos sua vitória foi se tornando evidente.
Perdeu Obirici. Perdeu a batalha, perdeu seu amado, perdeu a razão. Enclausurada em sua oca, só fazia chorar. Não comia, não bebia, não dormia, quase esquecia até de respirar. No dia do casamento do homem que havia rejeitado seu amor, não agüentou de sofrimento. Saiu da aldeia correndo, em prantos, para longe, em direção a um ponto mais alto do areal.
Era noite de lua cheia, e para a lua Obirici chorou. Era noite estrelada, e para as estrelas Obirici chorou, uma lágrima para cada ponto brilhante do céu. Chorou tanto que sua face aos poucos foi se convertendo em lágrimas, seu corpo todo se transformando, se desmanchando, se desfazendo. Obirici virou suas lágrimas, e suas lágrimas viraram um riacho, que foi fazendo seu caminho pela areia até chegar à aldeia.
Primeiro assustados, depois consternados, os tapi-mirins perceberam que o rio eram as lágrimas de sofrimento de Obirici. Chamaram o arroio de Ibicuiretã, e os açorianos quando aqui chegaram o rebatizaram de Passo da Areia, que deu nome ao bairro.

Não há mais areia, não há mais passo, mas Obirici ainda existe. Próximo ao viaduto que leva o seu nome e que se ergue sobre a Avenida Assis Brasil, a índia está imortalizada em uma escultura, com os braços para o céu, pedindo um alento a Tupã.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

AMOR CERTEIRO – a Lenda Urbana de Obirici

Capítulo I


Cenário: A história se passa basicamente no belíssimo cenário das ilhas do Guaíba (que acho pouco explorado) – dos lugares mais bonitos de Porto Alegre.
Incorporei duas versões da mesma lenda, já que a primeira me parece mais pitoresca e a segunda tem mais elementos. Logo a seguir vem a minha versão da continuação. Funcionaria como uma ponte entre a Lenda e o romance atual.
A idéia é passar a Lenda e a continuação em desenho animado, antes (pequeno), como abertura simplesmente.

Atenção: toda a semelhança com o começo do O Pecado Mora ao Lado – nos respectivos inícios – é mera coincidência.

OBIRICI – I parte – Folclore - versão de Ary Veiga Sanhudo.

“Ora, pois, esta encantada cidade juvenil, como todo grande centro do mundo que se preza, também tem a sua enfeitiçada lenda de amor! Obirici é a donzela dos seus cuidados, cujo nome mágico no linguajar dos indígenas locais significa – bela serena flor da tarde!”

O local onde hoje se assenta a moderna e majestosa cidade de Porto Alegre não tinha, até 1742, um só habitante branco permanente, muito embora houvesse, espalhados pelo rincão de São Francisco, morro de Santa Teresa, vale da Cascata, colina dos Moinhos e Vento, baixada do Passo da Areia, várzea do Gravataí, vale do Jacareí e outros sítios, uma infinidade de índios da nação tupi ou guarani, mais conhecidos, nestas redondezas, por tribos dos Tapes, sob a invocação de “Tapiacus” e “Tapimirins”.

Esses índios, ao que se sabe, vieram pressionados pelos seus grandes inimigos, os Minuanos, e aqui se estabeleceram em tempos que se perdem na noite do tempo.

É evidente que outras tribos aqui tinham suas tabas, mas, é necessário frisar, que essa banda oriental das terras que morriam nas serenas águas do Guaíba, agora conhecida como zona norte da cidade, oferecia mais proteção aos selvícolas, tendo em vista o baluarte natural, representado pelo espigão da Serra Geral, que poeticamente vinha descambar próximo às areias da barra, aí na boca do rio, defronte à ilha da Pintada.

Abrigavam-se, então, por aí, resguardadas pelas águas e defendidos pela montanha.

E nisto não se pode deixar de observar que, com a chegada do branco invasor, e mesmo depois da vinda dos casais açorianos, esses indígenas, ao contrário dos outros, que procuravam fugir de qualquer maneira, não só permaneceram em suas ocas, como ainda, aliando-se aos adventícios, muito contribuíram para a prosperidade e desenvolvimento da primitiva povoação do Porto do Dorneles.

É certo que muito influiu, para a tolerante e diversa atitude dos s elvícolas da hoje cidade de Porto Alegre, a circunstância excepcional do elemento líquido que rodeia nossas terras e a fortaleza dos montes, onde esses primitivos habitantes, mais tranqüilos, circulavam livremente com suas “pirogas” e “igarás”, quer caçando, quer passeando ou quer bombeando o inimigo.

Daí porque, no local onde é agora o Passo da Areia, estabeleceram os seus toldos os “Tapimirins”, tribo aguerrida que muita luta travou não só com os “Tapiacus” , como ainda com os terríveis “Minuanos”, transformando essas baixas paragens em verdadeiros campos de batalha. Porque era só o inimigo descer o dorso do morro e a peleia campeava feroz e exterminante!

Era ali, pois, uma nação em permanente alerta.

E ocorreu, então, que em meio de tantos heróis valentes, um chefe surgiu, natural e pomposamente, impondo-se, e sobretudo aparentando singular valor e riqueza, de vez que sua linda tenda, diferente em tudo, era, ademais, protegida por inexpugnável cerca de varas de camboim e cambará.

Era um verdadeiro palácio em meio da simplicidade geral das “ocas” improvisadas e paupérrimas.

E como não podia deixar de ser... era o gostosão daquelas paragens... vivamente requestado pelas mulheres de todas as tribos!

Duas jovens, não obstante, disputavam das graças do grande cacique, deixando-o em visível incerteza quanto à preferida.

Até que um dia, depois de muito pensar, mesmo porque a situação cada vez se tornava mais embaraçosa, resolveu o chefe índio que seria a eleita do seu coração aquela que conseguisse sair vencedora num torneio de flechas.

E assim, numa bela e sorridente manhã de primavera, chamou as duas belas guaranis e, dando-lhes uma flecha a cada uma, disse: – “Casar-me-ei com aquela que vencer o torneio!”

Não há dúvida que as rivais tiveram um sobressalto e entre o embaraço e a surpresa começou a contenda.

A vencedora, cujo nome a lenda não guardou, provavelmente mais calma e mais dona de si, cheia de faceirice morena de moça dos campos, levantou a flecha, distendeu o arco e acertou na borda do alvo plantado pelo guerreiro amado a uns metros de distância.

Obirici, tímida e sensível, apercebendo-se do perigo que o seu coração amante enfrentava, lançou, trêmula, a sua flecha, que passou longe do cepo que servia de alvo.

Havia perdido o torneio e com ele o seu grande amor!

A lenda diz que precisamente era ela quem mais o amava, e daí uma tristeza imensa a invadiu definitivamente.

E tão desiludida e agoniada ficou, que se recolheu, dentro da sua infelicidade, à sua oca, com o coração partido e alma voltada para o infortúnio e a morte, pedindo sinceramente a Tupã que mandasse um raio para terminar-lhe com aqueles dias da sua vida amargurada. Só aspirava, pois, uma coisa: morrer!

Daí que a formosa indígena, banhada num desespero imenso e numa dor pungente, voltou assim suas ardentes súplicas aos céus, implorando ao deus da sua devoção que a levasse aos seus insondáveis reinos do infinito!

No seu desespero pôs-se a chorar, e tanto chorou, reza a tradição, que as suas lágrimas, depois de desfigurarem o seu belo rosto, continuaram dia e noite a cair, cristalinas e luminosas, e correndo sobre a terra arenosa, que os seus pés vacilantes pisavam, deixaram nela, para sempre, o regato que os indígenas chamavam Ibicuiretã, ou seja, o nosso conhecido Arroio da Areia, lá no passo do mesmo nome, e ora encoberto em boa parte pela urbanização da atual avenida Tapiaçu.

Quem, pois, hoje, ao passar ao lado das águas barrentas e sujas daquele grande valo ao longo da Avenida Rio São Gonçalo, no bairro Passo da Areia, e que nasce naquela baixada para os lados do Country Club, no arrabalde Boa Vista, pode imaginar que tão insignificante acidente geográfico, atualmente ponto quase perdido da cidade, acendeu na imaginação ingênua do nosso aborígine uma tão maravilhosa lenda de amor e paixão?

Como se vê desta narração, essa foi a lenda, ou melhor, a explicação que os nossos índios lançaram mão para justificar a existência daquelas águas lodosas que se escoam lá na baixada do Passo da Areia, então conhecida entre os naturais, antes da chegada dos açorianos a estes campos de Viamão, como o lugar em que as águas correm sobre o pó: Ibicui-retã!

Obirici era uma linda índia da tribo Tapimirim, que morava aí para as bandas do Passo da Areia, à margem do riacho que acima descrevemos, no lugar conhecido pelos silvícolas pelo nome de Tapiaçu, ou seja, aldeia grande, e cujos sentimentos, naturalmente reforçados pela imaginação e o tempo, inspiraram essa página, a mais bela e encantadora crônica desta aprazível cidade sorriso.

Eis aí, pois, a lenda de amor da cidade!

Teria ficado a nossa crônica só nisso, e não passaria a outras esferas da arte, embora seja uma página deliciosa e admirável, desenterrada da história deslumbrante da cidade, não fora os fluídos de imaginação e sensibilidade que inspiraram a musa do compositor Gabriel Padilha que, enfeitiçado pela lenda da bela Obirici, divulgada nas páginas do mais querido vespertino da cidade – Folha da Tarde – a musicou e, apresentando ao grande público, transformou tão fascinante tema numa agradável canção popular, intitulada “Canção de Obirici”.

I

Não sabias que o amor,
É tudo o que a gente tem,
Tudo o que se pode dar...
E não se pode negar...

II

Obirici, virgem morena,
De olhos verdes cor do mar,
Essas lágrimas de amor,
Dos teus olhos a chorar...
Parecem gotas de orvalho,
São como chuva de estrelas,
No firmamento a brilhar,
Tupã ouviu tua prece,
E fez nascer do teu pranto,
Um riacho de saudades,
Daquele amor puro e santo,
Obirici... Obirici...