quarta-feira, 19 de maio de 2010

2º Movimento – “Navegar é preciso, viver não é preciso.”

O sábado surgiu com o frescor de uma promessa. Num céu de Simpsons, Bia, com um vestido xadrez em azul clarinho e branco, acinturado, com ampla saia e chapeuzinho, lembrando muito os trajes dos anos cinquenta – para fazer uma brincadeira com André, que havia dito apreciar tudo o que se relacionasse com aquele tempo –, saiu à porta para receber o avô que chegava com Bruno, que, depois de ficar bem paradinho por poucos instantes para que Bia lhe colocasse uma fita azul da cor do vestido, exibiu-se todo frajola, parecendo dar-se conta de que fazia par no figurino com sua adorada dona.
Tadeu, o primo de onze anos, já tinha programa para aquela tarde; mas Armando os levaria até lá, aproveitando para dar uma conferida no tal rapaz.
“Adoro outubro, adoro a primavera” – disse Beatriz para si mesma, ao receber os primeiros raios de sol na porta de sua casa.– Vamos Bruno! – e correu, puxando seu fiel escudeiro para entrarem no carro. Estava bem animada, e, com o ventinho que entrava pela janelinha quebra-vento, foi tomada por uma agitação, que lhe dava, às vezes, um arrepio de prazer na base da espinha. O cachorro, que adorava passear de carro, ocupava uma das janelas da trás, com a cara quase pra fora. E Armando, bem eloquente naquela manhã, estava feliz de poder fazer algo pela neta.

A passarela da marinha do clube, não fosse por algumas garças e uns biguás, os quais Bruno – ignorando as leis de boa vizinhança, e sem a mínima noção sobre a etiqueta do bom visitante – espantou, mas que teimosa e obtusamente retornaram, estava praticamente deserta àquela hora. Apenas, aqui e ali, alguns homens, consertando alguma coisa ou iniciando os preparativos para a partida. Sentado num tamborete, com as longas pernas espichadas para frente, todo de branco, moreno, tostado de sol e lindo... deixando Bia de garganta seca e coração disparado, estava André.

- Jay Gatsby... – falou baixinho, gracejando e recuperando um pouco do controle.
Com um sorriso que tentava desmentir o embaraço, percebido na maneira como esquecera de tirar as mãos do bolso por alguns segundos... acabou desencilhando-se, e, de forma tranquila, tocou de leve o braço da moça. Sem saber bem o que estava fazendo, deu-lhe um beijo em cada face; quase sem sentir o prazer do toque, de tão ansioso. No segundo beijo – imperceptível para quem olhasse de longe, e inegavelmente para Bia – demorou-se uma fração de segundos a mais.
- André!
- Bia!
- Esse é o meu avô, Armando.
- Muito prazer – falou o jovem, com um sorriso franco e um olhar tão honesto que deixou Armando em paz. (“Quem vê cara, não vê coração” – diria Teresa, na volta. Mais para provocá-lo, já que acreditava firmemente no julgamento de Armando).
- E esse é Bruno, meu guarda-costas... que vai fazer o seu debut nas águas. Veio o menino?
- Ah, sim, entrem, por favor... vou lhes apresentar Domenico – disse André, dando passagem aos três, e com carinho oferecendo a mão a Bia. Sob o escrutínio de Bruno que, rosnando de leve, mantinha os olhos no inimigo.
- É esse o tal barco, então? – perguntou o avô. – Imponente! Sossega, Bruno – falou, entre dentes, só para o cachorro, e dando uma risada em seguida.
- Sim, esse é o Velho Guerreiro! E esse é o Capitão Domenico. Domenico é chileno; quando era marinheiro, navegou pelo mundo inteiro, já esteve até na Rússia. Agora é o nosso comandante. E esse é o seu subcomandante, o Victor, Victor Hugo, seu filho, repetiu, destacando bem o “c” de Victor e mostrando o menino que, surpreendido e radiante, ao dar de cara com Bruno, foi logo passando a mão em sua cabeça, sinal de que ali uma sólida amizade estava se iniciando. Aproveitando para desenferrujar o espanhol, Armando tentou se comunicar com Domenico na sua língua natal, e Victor Hugo levou Bruno para conhecer o barco.
Não tardou muito, Armando, pedindo licença e desejando a todos um bom passeio, retirou-se.
- Mas não vai junto? – perguntou André, amável.
- Fica para outra vez, só vim trazer a princesa. Bruno! Te comporta! – falou, indicando, com o olhar dirigido à neta, que o “conselho” não era somente extensivo ao cachorro.
E já Domenico começou a soltar as velas, aproveitando o vento que vinha batendo, para a desatracagem.
- Todos a bordo! – gritou, com seu acento espanhol, fazendo Bruno latir e Victor estampar uma cara de faceirice.
- Dá licença só um minutinho que vou dar uma mão pro Domenico. Nessa hora, uma ajuda cai bem. Já volto.
E Bia ficou a contemplar o espetáculo dos dois homens inclinando-se e recurvando-se, no trabalho com as grandes velas. De relance, percebeu os músculos do rapaz, e isso a agradou. Havia beleza em seus movimentos, um misto de leveza com vigor, que a fez recordar um bailarino russo no papel de Romeu de Prokofieff, que vira uma vez no Teatro Municipal do Rio.
Dali a pouco, ganhavam velocidade, e, por falar em dança, parecendo que, entre o barco e o vento, dera-se o necessário entrosamento, tal qual certos pares de dançarinos de ritmos populares, que só depois de alguns compassos de desacertos, conseguem afinal entrar em harmonia, sentindo o mesmo ritmo, interligando-se na mesma cadência, até se tornarem um só.
O menino e o cachorro, com olhares de encantado espanto, e marejados de vento, iam duros como estátuas, tentando não perder nada da paisagem náutica.
Num minuto, retornava André para o lado de Bia, surpreendendo-a em seus devaneios.
- Gostei da sua roupa...
- Eu também!... – e deu um suspiro, logo se dando conta e recompondo-se. – Quer dizer, gostei da sua... e que luxo, hein!... – exclamou, dirigindo o olhar ao elegante veleiro de porte médio que rebrilhava, com seus frisos dourados nas laterais. Me sinto a própria Jackie Onassis.
Ele riu, finalmente mais relaxado, emendando:
- É... o legal desse barco é que ele é veleiro, mas também tem motor. A gente pode se divertir, praticando um esporte, e, em dias de pouco vento, sair igual – e solícito, mudando de assunto - Quer um copo dágua? Será que eles querem? – perguntou referindo-se aos dois pequenos e desaparecendo nas dependências internas, para voltar em seguida com água para todos. E logo ouviu-se a voz de Billie Holiday, à qual rendeu-se Bia, fascinada.
- Puuuuxa!...
- Gostou?
- Não sabe como!... Obrigada. Assim vou ficar sem jeito, pois não trouxe nada...
- Trouxe o que era suficiente... – justificou-se, pondo no olhar uma intenção que não passou despercebida, e pagando a ousadia com um rubor. O que a comoveu. Não que não gostasse dos homens mais atilados, desinibidos, mas sabia reconhecer o encanto que havia nos tipos mais sensíveis, os “enrolados”, como diziam suas amigas. Os que não tinham necessidade de competir e nem de provar nada, pois isso abria um mundo de possibilidades...
- É a primeira vez que saio num veleiro... – retomou, rompendo o breve embaraço. – Tava pensando... quanta gente vive nessa cidade e desconhece esse lado, toda essa beleza...
- E o começo de tudo... desde os primeiros habitantes, que vieram para cá em função das águas, não é mesmo?... A propósito, porque Obirici?...
- Ah, ah, ah... Você não vai acreditar, é uma coisa muito engraçada... uma coisa de família. Olha só... – e relatou a história, incluindo a parte das gozações.
- Veja só... mas não é que parece mesmo uma índia!... o cabelo, os traços... e essa história... – e logo, readquirindo o tom alegre de sempre – Desculpe o humor negro, mas, sem querer ser muito pessimista... do jeito que a coisa vai... água, no futuro, nem chorando...
- Ah! – mais do que uma risada, Bia deu um esgar, seguida por uma pantomima de tentar jogá-lo na água. – E Irajá? Vem de onde, ó terrível ser das profundezas...
- Irajá é um dos nomes de um tio meu – explicou, sorrindo. – Na hora de escolher o nick, foi o primeiro que me veio à cabeça. Depois fui ver o significado... Em Tupi quer dizer ninho de abelhas... ou seja colméia. Achei legal...
- É... combina... – pensou a garota, desejando provar aquela doçura.
E o veleiro, nas mãos hábeis de Domenico, como se entendesse seu papel de condutor de um romance florescente, parou de jogar, principiando a deslizar suavemente, enquanto diminuía a velocidade e enveredava-se pelas pequenas ilhas de vegetação nativa e espessa, que evocavam seres invisíveis e reinos de fantasia. Por algum tempo, todos se postaram em silêncio, sentindo nada mais que a refrescante brisa e o tépido sol de primavera. Com um esticar dos braços, podiam roçar os salgueiros chorões das margens. Bruno, de vez em quando, fazia-se ouvir em latidos curtos, como que saudando as árvores. Victor contava segredos em seus ouvidos... planos de batalhas contra terríveis piratas? Dali a pouco, mudando de ritmo e recuperando o ímpeto, o barco navegava altaneiro. Logo contornou a ponta do Gasômetro em direção à zona sul, aumentando nos passageiros a expectativa e o deleite da esplêndida aventura.
- Sempre que posso, venho para cá. Aprendi a velejar quando tinha dez anos, com meu pai, quando compramos nosso primeiro barco. Agora, venho mais nos fins de semana, quando não há prova ou o trabalho me permite, e em geral sozinho. Amo as águas, o rio, o mar... Na verdade, se pudesse, estava fazendo biologia marinha ou oceanologia. Quem sabe um dia... – e seu olhar, um pouco triste, perdeu-se nas águas. Para logo se animar. – Vem, Bia, vou te mostrar o barco.
Descendo para a parte interna, conduziu a moça a um pequeno conjugado de sala e cozinha.
- Você quer alguma fruta? – ofereceu, mostrando uma belíssima cesta com maçãs, uvas, pêras, pêssegos, ameixas e kiwis. – Ou quem sabe... um vinho branco geladinho? – perguntou, já tirando duas taças do armário. – Pegue algumas frutas para as cri... quer dizer, para o Victor e... para o Bruno, deixa ver... – falou, abrindo um armário e tirando dali uma lata de biscoitos... acho que ele gostará disso.
Bia divertia-se, admirando-o na função com os lanches. Por trás da gentil solicitude, e da quase imperceptível timidez, transparecia um discreto e sutil refinamento.
Com os lanches prontos, voltaram ao convés.

2 comentários: