sexta-feira, 28 de maio de 2010

Na popa, Victor e Bruno dormiam a sono solto, cobertos por uma manta que André lhes trouxera. Bia, já tendo pego uma bela cor, começou a tiritar. Mais que depressa, o rapaz lhe trouxe um blusão, com ele cobrindo-lhe os ombros.
- Pronto... agora tá melhor, né?... – disse, dando uma leve apertada, como um abraço desajeitado nos seus braços. No exato instante em que uma brisa alcoviteira passou, envolvendo-o com o perfume dos seus cabelos.
Bia, de costas, fechou os olhos, sentindo, secreta e deliciosamente, o abraço fugaz.
Que, de uma hora para outra, decerto por uma viração daquelas águas, ou quem sabe pelo inesperado pôr de sol, que despejando-se em fachos na linha do horizonte, e parecendo querer, de despedida, abraçar toda a cidade, e que com tanto esplendor cegou-os, transformou-se num abraço apaixonado, quase desesperado. Acompanhado pelo beijo mais doce – Oh, Irajá! doce como mel – pensou a moça –, na anatomia certa das bocas, no movimento das línguas e no gosto das salivas. O toque das peles, o cheiro dos corpos e a respiração, como pano de fundo, roubando-os à razão.

Um tempo impossível de ser medido, embora indelevelmente transformado em eternidade em suas lembranças, devolveu-os por fim, estremecidos e de coração acelerado, à realidade da terra.
- Ah, Bia... me desculpe. Não sei o que me deu...
- Não se desculpe – e aconchegou-se ao seu abraço, enquanto voltavam a um silêncio intenso e resistente que parecia querer prolongar a magia. Tinham medo de, ao sair daquele estado de apaixonada embriaguez, perder o que havia existido. Insidioso fantasma de amores falidos? Maligno pressentimento?...
De qualquer maneira, os sulcos das águas, agora, refletiam e confirmavam outros, profundos, definitivos, e certamente marcados a fogo... em suas almas.
Foi André que, a custo, quebrou o encantamento. Já aportavam.
- Então... passou o frio? – falou num acento rouco e, ao mesmo tempo, suave.
- Sim... “e para sempre” – teria dito a moça ao perceber, tão perto de si, a intensidade dos olhos azuis, que agora pareciam mais escuros.

E logo surgiam Victor e Bruno, com cara de recém acordados.
O céu, querendo fazer jus à lenda de que a cidade tinha o pôr de sol mais lindo do mundo, não se fez de rogado, e exibiu-se em rajadas de rosa, laranja e ouro, logo transformadas em puro azul rei, que, lembrando requintados frisos, desciam em clarões escarlates e corais com fulgurações púrpuras pela linha do horizonte. À leste rebentaram pássaros, no derradeiro balé com que encerrariam o dia. E bem acima de suas cabeças, papagaios, algariados e tagarelas, apressados – quem sabe para pegar um bom lugar nos galhos da sua árvore preferida – apareceram, sacudindo o que restara da sonolência de Bruno, que não se intimidou e respondeu à altura, fazendo todos rirem.
Uma lufada vigorosa fez com que Bia, instintivamente, se encolhesse mais ainda no blusão.
- Ah, André... que passeio inesquecível. Que dia!...
- Eu também... aprendi muito. Aliás... poderíamos pensar talvez em cobrar ingressos e inventar o passeio-seminário, no qual as pessoas ouviriam e discutiriam temas variados... que tal? – falou em tom de brincadeira.
- Ah, ah, ah! Uma boa idéia!
Ao descerem para pegar o carro, já tendo se despedido de Domenico e de Victor – que adorou ter conhecido Bruno, prometendo-lhe uma visita qualquer dia – no corrimão, outra vez suas mãos roçaram-se de leve, fazendo com que novas ondas de emoção jorrassem em seus corpos.

Aquele fora, sem dúvida, um dos melhores domingos de suas vidas.

Mais tarde, após ter deixado Bia na casa dos avós, sentindo por sua vez um pouco de frio, André pegou o blusão, aspirando o perfume que ali se impregnara. Que cheiro era aquele? De terra, de chuva... lembrava jasmim, lembrava petúnia... E o cheiro não saiu mais da sua cabeça. Bem como sua voz, que parecia falar por ele, por alguma parte sua esquecida, adormecida, mas não totalmente morta... Respirou fundo, sentindo-se despertar. Há muito tempo que algo não o atingia com aquela força. Gente metida a rebelde, fazendo discursos vazios, via todo dia. Gente que, crescendo, mudava seu ponto de vista, conforme a melhor oferta... Mas... nas palavras daquela guria havia algo... uma filosofia, um sentido de vida... princípios e valores tão sólidos quanto... o Morro de Santa Teresa. Ia dizer um edifício. – "Tá... já tô pegando o jeito..." – pensou, sem deixar de rir. E deixou o pensamento correr, lembrando de si quando criança. O que mudara?... teria ele recebido uma oferta melhor?... E uma nova visão da moça intrometeu-se entre seus pensamentos tão sérios. Agora eram seus magníficos ombros, que, com as "saboneteiras" à vista e os belos peitorais, davam-lhe um porte de rainha.
Pela primeira vez, depois de muitos anos, sentia-se animado, vivo; esquecido das precoces responsabilidades e preocupações.

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