domingo, 23 de maio de 2010

Pouco depois, passando pelo extenso e bonito Menino Deus, a conversa voltou a ficar animada.
- Que loucura esses prédios gigantescos... não bastando nos deixarem sem o ar fresco do Guaíba, ainda por cima, descaracterizam a cidade... – mostrou Bia, sem perceber o sorriso amarelo do moço, que acabara de virar para o outro lado.
- Só que... se a gente for contra o progresso, daqui a pouco vamos ter que voltar ao carro de boi...
- O que não ficará muito longe da realidade das carroças... na nossa Mui Leal e Valorosa.
- É verdade, tenho que concordar. Que coisa grotesca! Absurda! Os pobres animais em meio ao trânsito de uma cidade grande. É medieval... andando em pistas apertadas, nas horas de pique, com cargas pesadíssimas... Dá dó.
- Eu não sou contra o progresso, claro... veja o modo como a gente se conheceu... – lembrou. – O que me incomoda é esse crescimento desordenado e aleatório... como se não houvesse um plano diretor... Até há, dizem... mas não parece.
- Você tem toda razão. Essa coisa de memória, de preservação das características básicas e essenciais de uma cidade, que fazem com que ela seja única, reconhecível e não qualquer outra é muito importante. Na Europa, de maneira geral, nem se fala. Quando penso naqueles prédios históricos, alguns em estilos góticos, totalmente restaurados, detalhe por detalhe... Nos Estados Unidos o pessoal também sabe preservar direitinho o seu patrimônio cultural. O café que tal escritor costumava frequentar, a mesa, a cadeira que ele sentava... estão lá até hoje... é incrível! Vivi lá um tempo e constatei isso com meus próprios olhos.
- Sem dúvida, são essas referências que formam a identidade de um lugar, fazendo com que o povo ajude a preservá-lo. O oposto daqui, que acaba virando uma cidade sem dono, sem identidade... como é que depois não querem ver monumento pichado?...
- Ou levado... – e riram ambos, recordando-se das ameaças do pai de Bia.
- Sem uma identificação fica uma terra fantasma... vazia de lembranças...
- O descaso gerando o descaso...
- Taí uma coisa que não entendo. Hoje em dia as pessoas têm muito mais informação, mas parecem não se importar muito com as coisas...
Num relance, duas fagulhas de indignação, escapulidas, inconsequentes, de um e de outro olhar, acabaram por se encontrar, sincronizando em ambos algo parecido a uma descarga elétrica.
- Talvez por isso mesmo, decerto ficam tontas com tantas coisas... – respirando fundo e recuperando a razão, a tempo, respondeu André, enquanto aproveitava para abrir a garrafa de vinho que transpirava a seu lado num balde de gelo.

- Tantos apelos, tanto consumo... – voltava Bia.
- É... aquilo que a gente falou nos emails, muito apelo sexual...
- Muito apelo para o ego... para o mundinho egocêntrico de cada um...
- Faltam valores...
- Generosidade... consciência...
Havia riso, havia confiança, havia entrega, parecendo ora o reencontro de dois amigos queridos, ora a euforia de desconhecidos mascarados em clima de folia pagã. Alegres por descobrirem entre si tantas afinidades.
(Take Five)
- Por essas e outras é que já me tiraram até pra gay, porque eu não saio dando em cima da mulherada feito louco... – confidenciou André, imaginando esquiadores invisíveis nos sulcos traçados na água pelo barco. – “Efeitos do vinho”, redimiu-se.
Bia deu uma gargalhada escancarada – Por essas o quê? – apimentou um pouco, para logo continuar: – Nos anos sessenta, setenta, sei lá, sexo era um estandarte da liberdade. Hoje é consumo, banalidade.
Depois de alguns minutos de silêncio, ainda de olhos postos nas águas, como se falasse consigo, retrucou André:
- Não que não seja bom...
O Velho Guerreiro, para dar uma força, ou porque estivesse em manobras de acostamento nas escoladas mãos de Domenico, deu uma sacolejada, jogando um contra o outro e fazendo suas mãos e braços confundirem-se, roçando-se levemente.
- Acho que é hora do almoço... vamos atracar... essa é a bela Vila Assunção.
Empolgados pelo papo e pelo mútuo deslumbramento, não viram o tempo passar. Logo desceram todos, com Bruno e Victor à frente, abrindo caminho em direção ao restaurante.
Daí a uma hora retomaram, pondo-se ao largo, em direção a Belém Novo.

Quase três horas depois voltavam.

2 comentários:

  1. então. sabe aquela "cidade-verde" que de verde não tem mais por poderio econômico de obreiro do "novo mundo"?
    .
    nela ainda existem crianças, adolescentes e jovens que não de esquecem do casarão das avós, aqueles que ficavam na rua da sé que faz quina com a esquina da fé, e fazem coro acompanhando uma turma danada da brega, que pega no pé de quem jogou ao vento os contos
    das carochinhas-avós que não existem mais.só
    na lembrança.
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    mas depois de uma passeata, com bandeiras pelo direito de resgatar o novo e palavras
    de ordem a não mais poder, aproveitam o seu final, para um lanche no mac patinhas. afinal
    foi o combinado com a turma de frente, não?
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    o quanto usam de valores que eram valores, pra se enganjarem no novo! o quanto brincam de resgatar memória, para delas ganhar algum
    que não significa mais do que a busca de outro
    valor.
    .
    é o progresso. que antes de posto precisa ser
    revisitado. qual é o que eles querem? não se sabe, ainda. oxalá, o encontrem a tempo.

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