quinta-feira, 29 de abril de 2010

Capítulo II

As Lágrimas de Obirici (versão do original, publicada pela RBS).

A origem dos nomes da maioria dos bairros que formam a capital gaúcha se perde no tempo. Em muitos casos já nem há vestígios dos elementos que serviram para que recebessem a denominação pela qual são identificados até os dias de hoje.

É assim com o Passo da Areia. A areia já se foi há muito tempo. Aquela área da cidade está toda urbanizada.
O passo, até resistiu, mas não faz muito também deixou de existir. Antigamente, quando índios ainda habitavam a região, era um riachinho chamado por eles de Ibicuiretã, que significa “rio de areia”, “água que corre sobre o pó” ou ainda “passo da areia”. Brotava na baixada da Boa Vista e seu leito sinuoso passava pelo meio do areal.
Com a urbanização, o passo foi canalizado e virou um valão. Suas águas tornaram-se sujas e barrentas e atravessavam o bairro espalhando mau cheiro. Com certo alívio, os moradores locais viram o córrego ser aterrado no início dos anos 80, quando ali começou a construção de um shopping center.
Apesar deste fim um tanto melancólico, a origem do Ibicuiretã está ligada a uma linda história de amor.

Quando o homem branco sequer havia pisado naqueles areais, ali se instalara a tribo tapi-mirim, da nação dos tapes. Espremidos entre o Guaíba e morros, volta e meia precisavam defender sua taba com paus, pedras, lanças, arco e flecha de ataques de tribos inimigas. Os tapi-mirins viviam em permanente alerta. E como não tinham cacique, eram comandados por um chefe guerreiro. Se esse chefe adoecia, envelhecia ou morria, cabia ao conselho de anciãos escolher um novo líder para as batalhas que viriam.
Depois de eleito, o chefe, geralmente jovem e solteiro, começava a despertar a atenção das índias solteiras. Aquele que até outro dia era apenas mais um entre os seus, se convertia em um abençoado de Tupã, um escolhido dos deuses. E, assim, suscitava uma disputa entre as donzelas da aldeia. Todas passavam a usar seus enfeites mais bonitos, suas tintas mais coloridas, seus perfumes mais cheirosos. Tudo para conquistar o coração do agora poderoso guerreiro.

Mas com Obirici, uma linda jovem daquela tribo, os sentimentos não funcionavam deste jeito. Desde curumim ela nutria amor por um único índio. Nunca havia confessado sua paixão, no entanto. Amava em segredo, em silêncio, sozinha.
Quis o destino que o índio por quem ela era apaixonada fosse escolhido o chefe guerreiro dos tapi-mirins. Obirici pensou, então, que chegara o momento para se declarar.
- Grande chefe, estou aqui para dizer que te amo. Quero ser tua esposa, passar a vida ao teu lado.
- Tu não és a única a declarar amor por mim, Obirici.
- Outra índia se apresentou como tua pretendente?
- Sim. Ela diz me amar como ninguém mais me amaria.
- Mas eu te amo tanto quanto ela, mais até. E desde sempre. Desde que soube o que era amar alguém...
- Eu acredito, Obirici, mas estou indeciso.

Diante do tímido amor de sempre e da paixão repentina, o índio não soube o que fazer. Foram dias tristes para Obirici. Passou noites em claro, chorando, soluçando, odiando amar.
Como o novo chefe não chegava a uma decisão, ele próprio pediu que o sábio conselho de anciãos estabelecesse uma solução para o impasse. Assim foi feito: as duas pretendentes disputariam um torneio de arco e flecha. A vencedora seria a mulher do chefe guerreiro.

No dia do desafio, toda a tribo reuniu-se para assistir ao grande acontecimento. Nunca a disputa para ser esposa do chefe havia chegado tão longe. Muitos repararam que Obirici demonstrava estar muito nervosa, enquanto que a concorrente parecia ganhar confiança com toda aquela gente como assistência.
Obirici transbordava insegurança. Tremia seu arco, tremia sua flecha, tremia seu braço, suas pernas, seu corpo todo. O mundo tremia em seu redor. Suas flechas atingiam o alvo sem muita convicção, como se tivessem desistido do vôo no meio do caminho.
A outra índia parecia mais afeita ao arco e à flecha. Seus disparos eram precisos, fulminantes, certeiros. Cada flecha sua que acertava o alvo era como se acertasse também o coração de Obirici. Aos poucos sua vitória foi se tornando evidente.
Perdeu Obirici. Perdeu a batalha, perdeu seu amado, perdeu a razão. Enclausurada em sua oca, só fazia chorar. Não comia, não bebia, não dormia, quase esquecia até de respirar. No dia do casamento do homem que havia rejeitado seu amor, não agüentou de sofrimento. Saiu da aldeia correndo, em prantos, para longe, em direção a um ponto mais alto do areal.
Era noite de lua cheia, e para a lua Obirici chorou. Era noite estrelada, e para as estrelas Obirici chorou, uma lágrima para cada ponto brilhante do céu. Chorou tanto que sua face aos poucos foi se convertendo em lágrimas, seu corpo todo se transformando, se desmanchando, se desfazendo. Obirici virou suas lágrimas, e suas lágrimas viraram um riacho, que foi fazendo seu caminho pela areia até chegar à aldeia.
Primeiro assustados, depois consternados, os tapi-mirins perceberam que o rio eram as lágrimas de sofrimento de Obirici. Chamaram o arroio de Ibicuiretã, e os açorianos quando aqui chegaram o rebatizaram de Passo da Areia, que deu nome ao bairro.

Não há mais areia, não há mais passo, mas Obirici ainda existe. Próximo ao viaduto que leva o seu nome e que se ergue sobre a Avenida Assis Brasil, a índia está imortalizada em uma escultura, com os braços para o céu, pedindo um alento a Tupã.

5 comentários:

  1. mesma lenda, com uma versão maravilhosa: a que
    nos leva ao mundo da arte e magia.
    .
    parabéns, rose.

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  2. .
    pô rose. um belo roteiro pra um filme sai desse amor impossível.
    .
    pensa nisso ai.

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  3. Sandra Meneghetti Sader30 de abril de 2010 às 19:09

    Adoro!
    É 1 das nibhas favoritas...
    Amei!

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  4. Sandra Meneghetti Sader30 de abril de 2010 às 19:10

    Aonde diz nibhas se lê minhas... :(

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  5. Benvinda Sandra!... tava na hora, né!?...

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